Biografia
1 Louis Ferdinand Cruls, explorador do céu e da terra
O grande explorador Louis Ferdinand Cruls nasceu em Diest, província de Brabante, na Bélgica, em 21 de janeiro de 1848, filho do engenheiro-civil Philippe Augustin Guillaume Cruls (1818-) e Anne Elizabeth Jordens (1831-). Após fazer seus cursos de humanidades, entrou para a Escola de Engenharia Civil da Universidade de Gand, que frequentou de 1863 a 1868. Mais tarde, em 1872, foi admitido como aspirante de engenharia militar obtendo, nesta última carreira, que seguiu durante um ano, os postos de segundo e primeiro tenente.
2 O engenheiro-militar e a demissão do exército belga para visitar o Brasil
Em 1874, Louis Ferdinand Cruls pediu demissão do exército de seu país com o objetivo de visitar o Brasil, apenas por curiosidade e sem nenhum plano premeditado, mas influenciado pelos brasileiros que, na época, estudavam na Bélgica. Assim, em 5 de setembro de 1874, Cruls embarcou no pequeno vapor que transportava os passageiros de Bordeaux com destino a Pouillac, onde ancoravam os navios das Messageries Maritimes, que faziam a travessia da Europa à cidade de La Plata, na Argentina.
3 Travessia de Bordeaux ao Rio de Janeiro e encontro com Joaquim Nabuco.
A viagem de Bordeaux a Pouillac era feita, geralmente, em condições bastante desagradáveis, o que provocava, a cada traslado, numerosos protestos dos passageiros. De dimensões muito limitadas, a embarcação a vapor era insuficiente para acomodar todos os viajantes, frequentemente em número considerável e que se comprimiam a bordo.
Pouco depois de haver deixado o cais, Cruls conheceu Joaquim Nabuco , que acabava de viajar pela Europa e regressava ao Brasil. Nabuco, nessa época, iniciava sua carreira diplomática. Poeta, escritor, jornalista, orador de talento, Nabuco não imaginava o papel importante que lhe estava reservado para mais tarde, na política do Brasil, como símbolo das grandes causas liberais e humanísticas.
Mais tarde, Cruls confessou que a sua aproximação de Joaquim Nabuco deu-se em virtude de uma simpatia mútua, que rapidamente os conduziu ao terreno das confidências. Cruls, então, explicou-lhe que se dirigia ao Brasil por influência de um dos seus compatriotas, o engenheiro Caetano Furquim de Almeida (1850-), que ele conhecera em Gand, no tempo em que ambos frequentavam a Escola de Engenharia Civil. Foi durante o tempo dos seus estudos, entre 1863 e 1869, que Cruls se associou a um grupo de estudantes brasileiros : Jacob Van Erven (1844-1875), Christiano Ottoni (1851-1934), Manuel Caetano da Silva Lara (1847-), José Maria Vianna (1852-), Antônio Chermont (1846-), Félix de Moraes (1844-).
Cruls também informou a Nabuco que o tempo de sua permanência no Brasil dependia da entrevista que deveria ter, no Rio, com Furquim. Na ocasião, Nabuco ofereceu-se para colaborar, afirmando que tudo faria pela permanência de Cruls no Brasil, onde existia um vasto campo aberto à iniciativa de todas as espécies, principalmente às de inteligências voltadas para a geodésia e astronomia, algumas das ciências de preferência do Imperador. Nabuco contava com as relações de sua família, sobretudo de seu pai, que gozava de grande prestígio político e social. Por elas, inclusive, esperava chegar ao poder pelo partido liberal. Acrescentou Nabuco que a hospitalidade e a natureza dos brasileiros eram, de tal modo, atraentes, que o estrangeiro facilmente se sentiria seduzido.
Alguns instantes mais tarde, Cruls e Nabuco embarcaram no paquete Orénoque, que logo deixou os estaleiros de Marselha. Era a primeira grande viagem do explorador belga. Entre os passageiros, além de Nabuco, Cruls se relacionou também com o médico Dr. José Bento Martins.
Nessa época, levavam-se entre 20 e 21 dias na travessia de Bordeaux ao Rio de Janeiro, onde Cruls e Nabuco só chegaram em 26 de setembro daquele ano. No dia seguinte à chegada, Cruls soube que Furquim estava no Rio Grande do Sul, ocupando-se como engenheiro da construção de uma estrada de ferro. Era um contratempo com o qual não contava. Mandou-lhe um telegrama. A resposta por carta chegou alguns dias depois, informando-o que Furquim só poderia estar de volta à cidade do Rio de Janeiro alguns meses mais tarde. De fato, desde de janeiro de 1874 até o primeiro semestre de 1875, o bacharel Caetano Furquim, o conselheiro e engenheiro Christiano Benedicto Ottoni e o engenheiro Herculano Veloso Ferreira Penna estavam no Rio Grande do Sul estudando e orçando a ferrovia de Porto Alegre a Uruguaiana para a firma Furquim, Ottoni & Penna.
Depois de 15 dias de espera, graças a Nabuco e ao dr. Bento Martins, Cruls foi recebido por várias famílias cariocas, quando, então, pôde verificar a exatidão do que lhe havia afirmado Nabuco sobre a hospitalidade brasileira. Aconselharam-no a procurar o Imperador D. Pedro II, que também o recebeu com a tão natural amabilidade que dispensava aos convidados das recepções no Paço de São Cristóvão. Em geral, eram tão desprovidas de etiqueta que muito contribuíram para tornar a família imperial eminentemente popular.
Mais tarde, o Senador Nabuco apresentou Cruls ao engenheiro Buarque de Macedo , que ocupava o cargo de Diretor-Geral no Ministério dos Trabalhos Públicos e que seria, mais tarde, nomeado ministro. “Conservei da sua acolhida a melhor lembrança; era uma inteligência esclarecida e um espírito aberto às grandes idéias” escreveu mais tarde Cruls. “Infelizmente a morte cedo interrompeu o curso dessa preciosa existência, consagrada até então ao serviço do país” .
4 Comissão da Carta Geral do Império
Em 1874, Buarque de Macedo nomeou o engenheiro civil Louis Ferdinand Cruls membro da Comissão da Carta Geral do Império e Levantamento do Município Neutro, sob a chefia do Marechal Henrique de Beaurepaire Rohan. Embora tivesse vindo ao Brasil sem tempo de permanência predeterminado, motivos familiares obrigaram Cruls a retornar à Europa em janeiro de 1875. Aproveitando a oportunidade, o governo brasileiro o incumbiu de auxiliar o ministro do Brasil em Paris na recepção de uma encomenda de instrumentos de geodésia que havia sido feita algum tempo antes. No mês de junho desse mesmo ano, Cruls regressou ao Brasil para prosseguir com seus trabalhos na comissão para a qual fora nomeado.
5 Imperial Observatório
Em abril de 1875, uma pesquisa sobre o método de repetição e reiteração usado para a leitura de ângulos, com fins astronômicos e geodésicos, publicada em Gand, deu a Cruls os títulos necessários para que fosse admitido, como astrônomo adjunto, no Imperial Observatório do Rio de Janeiro em 1º. de fevereiro de 1876, com data retroativa a 6 de março de 1875. No ano seguinte, foi nomeado para a Carta Geral do Império.
Em 26 de maio de 1877, Louis Cruls casou-se com Maria Margarida de Oliveira (1861-1955), na Matriz de Santo Antônio, no Rio de Janeiro.
Nesse mesmo ano, em 1º de dezembro, Emmanuel Liais (1826-1900) – político e explorador também francês – nomeou Louis Ferdinand Cruls Secretário Ordinário da Comissão das Longitudes.
6 As crateras Cruls em Marte e na Lua (1878)
Quando do trânsito de Mercúrio pelo disco solar, em 6 de maio de 1878, Cruls apresentou, à Academia de Ciências de Paris, um artigo sobre os diâmetros do Sol e de Mercúrio durante o fenômeno.
Em 1878, publicou uma memória sobre as manchas e duração do movimento de rotação de Marte, trabalho que imortalizou seu nome, que denomina uma das crateras da Lua e outra de Marte.
Os volumes dos Anais do Observatório Imperial, em especial o quarto, publicado em 1881, provam a dedicação e a fecundidade dos trabalhos de Cruls sobre cometas, eclipses, asteroides e estrelas duplas.
7 Louis Ferdinand Cruls, diretor do Imperial Observatório
Em 1881, com o afastamento de Emmanuel Liais da direção do Observatório, Louis Ferdinand Cruls foi nomeado interinamente para substituí-lo.
Em 12 de fevereiro do mesmo ano, o Imperador D. Pedro II assinou um ato de naturalização já com seu nome aportuguesado para Luiz Cruls. Em 24 de março do mesmo ano, Cruls foi nomeado primeiro astrônomo do Imperial Observatório do Rio de Janeiro.
8 Amizade com D. Pedro II
Cruls residiu durante anos no velho prédio do observatório no Morro do Castelo. Lá nasceram quase todos os seus filhos.
Era comum o explorador belga ser interrompido durante as suas fecundas e pacientes pesquisas por uma visita, às vezes inesperada, mas sempre muito bem-recebida: a do Imperador, que subia até a cúpula para, muito humildemente, bater à porta de Cruls, identificando-se quase monossilabicamente: “É o Pedro” . Não era, na realidade, o Imperador, mas o astrônomo amador que procurava o explorador, como o fez em diversas ocasiões, ora para observar um cometa, um eclipse lunar ou até para discutir alguma nova descoberta. Mesmo diante da insistência de Dona Maria, esposa de Cruls, para tomar um chá, Dom Pedro recusava, com receio de perturbar a intimidade da família. Mas não eram raras às vezes em que cedia à insistência para aproveitar ainda mais os conhecimentos de astronomia que Cruls detinha. A vasta correspondência de Cruls a D. Pedro comprova a estima que ele devotava ao Imperador.
9 As descobertas de cometas no Imperial Observatório.
O ano de 1882 foi um de grande importância para a astronomia no Brasil, assim como para a ciência básica no século XIX. De fato, nesse ano, assistiu-se ao primeiro grande debate, no Parlamento brasileiro, sobre a importância da institucionalização da ciência como um dos objetivos políticos de um governo. Ao mesmo tempo, no Imperial Observatório do Rio de Janeiro, Cruls efetuava a segunda descoberta de um cometa realizada no Brasil. A primeira deu-se na cidade de Olinda, em 1861, quando o astrônomo Emmanuel Liais descobriu um astro que leva o seu nome.
Como disse Cruls em sua comunicação à Academia de Ciências de Paris, foi graças ao sistema de comunicação telegráfica, organizado pela Repartição dos Telégrafos brasileira, que qualquer fenômeno assinalado em qualquer região do vasto território nacional podia ser imediatamente comunicado ao observatório. Assim, em 10 de setembro de 1882, Cruls recebeu a comunicação de que um cometa estava visível a olho nu, um pouco antes do nascer do sol, do lado do nascente, observado por um pescador. No entanto, somente dois dias depois, em virtude das más condições de visibilidade, foi possível observá-lo, às 5h15. Em virtude de ter sido observado por vários astrônomos no mundo inteiro, ficou mais conhecido como Grande Cometa Austral de 1882.
10 O cometa Cruls (1882)
Nas comunicações de Cruls à Academia de Ciências de Paris, verificou-se como eram precárias, já no século XIX, as nossas condições atmosféricas. Com efeito, o céu permaneceu coberto de nuvens na região do leste, pela manhã, até o dia 22 de setembro de 1882. Todavia, dizia Cruls:
O cometa continuava visível em todas as partes do Brasil e os telegramas que nos chegavam relatavam que ele esteve visível em pleno dia e a poucos graus do Sol, nos dias 18, 19 e 20 de setembro.
Enfim, no dia 25, às 4 horas da manhã – relata Cruls à Academia de Ciências de Paris –, o céu no horizonte se mostra límpido e foi possível assistir a um espetáculo de uma beleza acima de toda a expressão. Nesse momento, uma parte somente da cauda emergia do horizonte e o aspecto era verdadeiramente imponente, pois parecia mais uma coluna de fogo do que um feixe de luz .
A cauda se apresentava quase vertical sobre a linha do horizonte segundo os relatos da época, em especial o de Luiz Cruls, e nada podia dar uma ideia do efeito grandioso que produzia aquela enorme coluna de fogo a se refletir nas águas da baía de Guanabara.
O mais notável nesse cometa não era a cauda, mas o seu núcleo, como muito bem notou D. Pedro II, em 25 de setembro daquele ano, comparando-o ao grande cometa de 1843, um dos mais excepcionais do século XIX. O Imperador afirmou que o de 1882 era muito mais notável pelo brilho do seu núcleo e cauda do que o de 1843, cometa que apresentou uma das mais extensas caudas já registrada na história da cometografia.
O cometa Cruls às vezes recebe também a designação Cruls-Finlay, pois um dos seus descobridores foi o astrônomo W.H. Finlay (1849-1924), do Observatório do Cabo, África do Sul, que observou o cometa na manhã do dia 8 de setembro. Nesse sentido, convém recordar que navegantes australianos observaram o cometa nos dias 7 e 8 de setembro. Apesar dessas prioridades na descoberta, vários astrônomos no mundo inteiro aceitavam que esse cometa recebesse unicamente o nome de Cruls.
11 Luiz Cruls, pioneiro na astrofísica no Brasil: prêmio da Academia de Ciências de Paris (1882)
O grande mérito do cometa Cruls não é só o fato de ele ser membro do grupo de Kreutz, ou seja, conjunto de cometas que, além de descreverem uma órbita muito excêntrica, passam a distâncias muito próximas da superfície solar. O que mais o valoriza, para nós, brasileiros, é o fato de que, com ele, iniciou-se a aplicação da análise espectroscópica no estudo dos cometas, um dos principais marcos do desenvolvimento da astrofísica, introduzida no nosso país graças às pesquisas de Emmanuel Liais no Imperial Observatório.
Foi com esse cometa que se obteve a primeira análise espectral de um corpo celeste efetuada no Brasil, e cujo resultado foi exposto na Academia de Ciências de Paris. Com efeito, usando um espectroscópio de Hoffmann de visão direta, com cinco prismas, Cruls determinou a existência, no núcleo e na cauda do cometa, de sódio e carbono.
Outro fator que contribuiu muito para a fama e o sucesso das observações efetuadas no Imperial Observatório do Rio de Janeiro foi o registro, no dia 16 de novembro de 1883, em Olinda, Pernambuco, da fragmentação do núcleo do cometa Cruls. O responsável por esse registro foi o astrônomo brasileiro Julião de Oliveira Lacaille (1851-1926), que se encontrava nessa cidade em missão governamental para observar a passagem de Vênus sobre o disco solar. Como relata em sua comunicação à Academia de Ciências de Paris, Lacaille afirma que foi logo após o seu retorno ao Rio de Janeiro (8 de janeiro de 1883) que ele e os seus colegas Lima, Louzada e Duarte puderam, às 21h, com a equatorial Dollond de 25cm do Morro do Castelo, distinguir os quatro fragmentos nos quais o núcleo havia se subdividido.
Essas observações tiveram grande repercussão internacional. Em conseqüência disso, o Prêmio Vals, da Academia de Ciências de Paris, referente ao ano de 1883, foi dividido entre Cruls e o astrônomo inglês William Huggins (1824-1910) que, além de haver aplicado, pela primeira vez, com sucesso, a fotografia ao estudo dos espectros dos corpos celestes, obteve, em 1881, por esse processo, o espectro do cometa 1881b.
Todos esses trabalhos valorizaram ainda mais as qualidades de pesquisador de Cruls. O relator da comissão que lhe atribuiu o prêmio, o astrônomo francês Hervé Faye (1814-1902), ressaltou que o
Sr. Cruls se fez conhecido por suas descobertas de cometas, sob a proteção benevolente do nosso ilustre confrade, Sua Majestade o Imperador do Brasil. O Sr. Cruls tem mostrado, através de seu trabalho, a utilidade de uma instituição astronômica de primeira ordem, nas regiões austrais. Suas recentes comunicações à Academia, o estudo que tem realizado sobre a constituição física do cometa mais brilhante deste ano, por uma aplicação inteligente dos métodos da análise espectral foi (sic) recebida com grande interesse. O prêmio que lhe atribuímos será considerado, ao mesmo tempo como um estímulo e uma manifestação da alta idéia que fazemos dos serviços que o Observatório do Rio tem prestado à Ciência.
A Academia aprova as conclusões deste parecer.
Cruls, por sua vez, afirmou que o aparecimento desse grande cometa, que se mostrou nos primeiros dias de setembro, o obrigou “a uma sobrecarga de trabalho, de que bem gostaria pudesse ter sido poupado” .
12 O trânsito de Vênus sobre o Sol
Em 6 de dezembro de 1882, deveria ocorrer o trânsito de Vênus sobre o Sol, visível em excelentes condições numa grande extensão das duas Américas. O Brasil não podia deixar passar essa ocasião, única na história da astronomia, sem tomar parte ativa na observação do fenômeno. Por isso, o governo, por solicitação de Cruls, requereu, às Câmaras Legislativas, um crédito de 30 contos de réis para financiar as despesas das comissões que deveriam ser enviadas às Antilhas, a Olinda e a Punta Arenas.
A discussão desse crédito permitiu, segundo Cruls,
que certo deputado espirituoso gracejasse a respeito do que ele chamava a astronomia do Imperador. Em contraposição, o jovem ministro do Império, Rodolfo Dantas, colocou a eloqüência da sua palavra a serviço da Ciência, e defendeu galhardamente o projeto, que foi votado. No Senado, o pedido de crédito foi sustentado e eloqüentemente discutido pelo Visconde de Ouro-Preto (CRULS, 1938, p. 285).
Como muito bem disse Cruls: “Seria por demais longo e sem grande interesse contar por miúdo as dificuldades que tiveram de ser superadas para que fosse preparado a tempo o material destinado às diversas missões”. (CRULS, 1938, p. 285).
Das três missões, Cruls escolheu a de Punta Arenas. Esta foi a última a deixar o Rio de Janeiro, uma vez que se gastou muito tempo no preparo das outras. “A lentidão com que foi concedido o crédito necessário às comissões levou-me”, diria Cruls, “a fazer na Europa algumas encomendas por telegrama. Ainda assim, quando chegou o dia 26 de outubro, marcado para a partida, ainda me faltava a objetiva da luneta principal.” (CRULS, 1938, p. 285).
A viagem a Punta Arenas só foi possível graças ao governo, que havia colocado à disposição de Cruls, a corveta Parnaíba, sob o comando do capitão de fragata Luiz Saldanha da Gama.
13 Luiz Cruls, divulgador científico
Como autêntico divulgador científico, o “Flammarion brasileiro”, como Cruls gostava de ser chamado, além de escrever artigos para a imprensa, criou, em1886, a Revista do Observatório, primeiro periódico exclusivamente dedicado às ciências editado no Brasil. Nessa revista, Cruls publicou os mapas celestes mensais que seriam reunidos no primeiro Atlas Celeste (1896).
Luiz Cruls foi pesquisador e explorador completo. Além das pesquisas, sempre se dedicou à divulgação científica dentro do espírito de que devemos, continuamente, justificar o que fazemos, num respeito à pátria que nos financia. Luiz Cruls, por sua vida dedicada ao nosso país, foi mais brasileiro do que muitos brasileiros.
14 Escola Superior de Guerra
Graças à sua formação militar – Cruls pertenceu ao Corpo de Engenharia Militar do Exército na Bélgica –, em 23 de março de 1889 , o explorador belga foi nomeado, por D. Pedro II, lente de Astronomia e Geodésia da Escola Superior de Guerra, na época um estabelecimento de formação de oficiais e, em seguida, da Escola Militar do Brasil. Durante os 19 anos em que pertenceu ao magistério militar, de início, como major-honorário e, mais tarde, por sua participação na Revolta da Armada, como tenente-coronel, manteve uma longa e excelente convivência com a oficialidade do Exército brasileiro.
Em 15 de dezembro de 1999, a Portaria n 674 do Ministério de Defesa concedeu, à 11ª. Região Militar, com sede na cidade de Brasília (DF), a denominação histórica de Região Tenente-Coronel Luiz Cruls. Tal homenagem se justifica pelos 32 anos em que Cruls prestou inestimáveis serviços à astronomia no Brasil como funcionário do Observatório Nacional, do qual foi diretor por 19 anos sob a jurisdição do Ministério dos Negócios da Guerra, no Império, e do Ministério da Guerra, na República.
15 A Revolta da Armada e a mudança da capital (1892)
Em 19 de fevereiro de 1892, as fortalezas de Santa Cruz e Laje no Rio de Janeiro, se rebelaram contra o presidente da República Floriano Peixoto. Em 6 de abril, 13 generais, após exigirem novas eleições, foram demitidos e Floriano decretou estado de sítio no Rio de Janeiro, na época, capital do Brasil.
Apesar dessa situação político-militar complexa, em 12 de maio de 1892, por ocasião da abertura da 2ª. Sessão Ordinária da 1ª. Legislatura, o Marechal Floriano Peixoto (1839-1895; presidente da República de 23 de novembro de 1891 a 15 de novembro de 1894), em mensagem ao Congresso Nacional, reputando de necessidade inadiável a mudança da capital da União, afirmou que o governo trataria de fazer seguir, para o Planalto Central, e que uma comissão deveria proceder à demarcação da área e fazer, sobre a zona, os indispensáveis estudos. Assim procedendo, Floriano Peixoto queria dar cumprimento às disposições do artigo 3º. da Constituição federal, que os constituintes de 1891 haviam incluído na primeira Carta Magna republicana brasileira, promulgada em 24 de fevereiro de 1891 e a segunda do país (a anterior, de 1824, havia vigorado durante 76 anos). Essa decisão, sem dúvida, devia estar relacionada também às ameaças que o próprio regime vivia em consequência da revolta da Marinha, em 23 de novembro de 1891, que derrubou Deodoro da Fonseca, quando o contra-almirante Custódio de Melo (1840-1902; ministro da Marinha de 23 de novembro de 1891 a 30 de abril de 1893) comandou uma rebelião de três navios no Rio de Janeiro. Se a própria Marinha brasileira ameaçava o governo brasileiro instalado na capital carioca, poder-se-ia imaginar o perigo de uma armada inimiga na baía da Guanabara.
16 As Missões ao Planalto Central
Em 1892, Cruls foi designado para chefiar a comissão exploradora do Planalto Central. Essa nova empreitada provocou uma mudança na atividade astronômica do Observatório Astronômico. Para maiores detalhes ver o comentário crítico sobre o livro de Luiz Cruls, Relatório da Comissão Exploradora do Planalto Central do Brasil.
17 Comissão de Limites entre Brasil e Bolívia
Em 1901, Cruls foi novamente designado para chefiar uma missão: a da Comissão de Limites entre o Brasil e Bolívia, encarregada de explorar as nascentes do rio Javari, de importância fundamental para a questão acreana.
Em Tabatinga, logo no início da viagem, o Major Tasso Fragoso caiu gravemente enfermo e foi transportado para Manaus. Ao subirem o rio Javari, outros integrantes da comissão de limites começaram, igualmente, a adoecer. Em Bathan, aonde chegaram os sobreviventes depois de 40 dias de viagem em canoa, quem caiu doente foi o capitão de fragata Carlos Acyolli Lobato. Enviado para Remate de Males e, logo em seguida, transferido para Manaus em estado grave, acompanhado do médico da comissão por determinação de Luiz Cruls, Accioly acabou falecendo na capital amazonense.
Assim, reduzida, seguiu a comissão: apenas com Cruls, o tenente-coronel Abrantes, o mecânico Eduardo Chartier e 21 praças. Atacado de beribéri, Luiz Cruls tinha as pernas tão cheias de edemas que mal podia andar. Achava-se em tal estado de fraqueza que seus companheiros insistiam para que abandonasse a missão e regressasse a Manaus e, depois, ao Rio de Janeiro, ao que ele respondia que, vivo ou morto, chegaria aonde já se encontrava a comissão peruana, pois queria que o nome do Brasil fosse honrado pela comissão, e que a comissão era o chefe e, por isso, ele devia ir até o fim .
Devido a esse espírito de patriotismo e abnegação, ao chegar ao fim da jornada, Luiz Cruls ia carregado em maca de tal modo haviam se agravado os seus padecimentos. Apesar disso, ele apenas iniciou a volta a Manaus após haver concluído a sua tarefa.
Terminados os trabalhos da Comissão de Limites entre Brasil e Bolívia e achando-se Luiz Cruls muito doente ainda, o chefe da comissão boliviana pediu ao médico, Dr. Long Fox, que o acompanhasse grande parte da viagem de volta a Manaus. Durante o regresso, tão penoso como fora a ida, Luiz Cruls adoeceu a tal ponto que o seu estado deixou preocupados o médico Dr. Fox e os seus companheiros, coronel Abrantes e Eduardo Chartier. Em Remate de Males, aonde Luiz Cruls chegou carregado em maca, encontrava-se o aviso Jutahy, embarcação que o transportou até o Solimões, de onde partiu no vapor Cidade de Manaos, que o recolheu, levando-o até Manaus, onde sofreu um novo acesso de febre.
Graças aos cuidados de um médico da comissão boliviana e de seu amigo tenente-coronel Abrantes, Cruls melhorou o bastante para dar cabal desempenho à sua missão, embora se visse obrigado a recorrer ao auxílio de dois praças do exército que o carregavam todas as manhãs até o pequeno observatório que havia instalado às margens do rio Javari para Cruls realizar as suas tarefas de determinação da nascente do rio.
No regresso ao Rio de Janeiro, graças à viagem marítima, o estado de saúde de Cruls apresentou algumas melhoras, embora seu organismo estivesse completamente invadido pelo impaludismo. Logo que chegou, sem descansar, deu início ao relatório sobre a missão, trabalhando sem auxiliares, pois os outros membros da comissão de limites, inclusive o secretário, haviam sido dispensados.
Concluindo o relatório Limites entre o Brazil e a Bolívia (1903), Luiz Cruls ficou tão doente que foi impedido de trabalhar. O governo concedeu-lhe várias licenças para cuidar de sua saúde, que nunca se recuperou inteiramente.
Em 17 de janeiro de 1908, o Ministério da Indústria, Viação e Obras Públicas concedeu-lhe um ano de licença, com vencimentos, para tratar da sua saúde, de conformidade com o Decreto Legislativo nº 1832 de 26 de dezembro de 1907. Cruls entrou no gozo dessa licença a 27 de janeiro de 1908. Em companhia da família, seguiu para Paris à procura de uma cura milagrosa para a malária.
18 “Tudo acabou!”
O amor de Cruls pelo Brasil era tão grande que, em sua viagem à Europa, permanecia no convés do navio a observar o céu todas as noites. Na noite em que contemplou o Cruzeiro do Sul desaparecer no horizonte oceânico, ao voltar para a cabine, disse para sua esposa: “Tudo acabou!”(CRULS, 1957, p. 27). Era a premonição de que não mais voltaria ao Brasil.
De fato, em 21 de junho de 1908, às 22 horas, Luiz Cruls faleceu em sua residência na rua Petit Champs, 48, Paris, de onde veio embalsamado para ser sepultado no carneiro 1135 do cemitério São João Batista, no dia 10 de agosto. O registro de óbito dá como causa mortis arteriosclerose complicada com hemorragia cerebral.
Seu trabalho na demarcação de limites entre o Brasil e a Bolívia o havia deixado irremediavelmente doente, mas sua paixão pela nossa pátria só foi superada pela que dedicou à sua esposa e aos seus filhos, como comprova a carinhosa correspondência trocada, durante as suas missões científicas, com sua esposa e filhos, cheia de afeto e poesia.
REFERÊNCIAS
CRULS, L. Commissão exploradora do planalto central do Brasil, H.Lombarts & C., Impressores do Observatório, Rio de Janeiro, 1894.
______. Atlas dos itinerários, perfis longitudinais e da zona demarcada. H.Lombarts & C., Impressores do Observatório, Rio de Janeiro, 1894. O conjunto completo dos mapas compõe um volume separado.
______. Commissão de estudos da nova capital da União, Typo-lith. Carlos Schmidt, Rio de Janeiro, 1896.
______. Relatório da Comissão Exploradora do Planalto Central do Brasil. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1947. (Brasiliana vol. 258)
______. Planalto Central do Brasil. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1957. (Coleção Documentos Brasileiros vol. 91).
_____. Reminiscências. Boletim de Ariel, Rio de Janeiro, ano. VII, n. 10, jul. 1938, p. 285.
_____. Commissão de estudos da nova capital da União, Typo-lith. Carlos Schmidt, Rio de Janeiro, 1896.
______. Planalto Central do Brasil. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1957. (Coleção Documentos Brasileiros).
______. Relatório da Comissão Exploradora do Planalto Central do Brasil: relatório Cruls. 2. ed. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1947.
_____. Reminiscências. Boletim de Ariel, Rio de Janeiro, ano. VII, n. 10, jul. 1938, p. 285.
Autor da biografia:
Ronaldo Rogério de Freitas Mourão
Doutor pela Universidade de Paris (Sorbonne), Astrônomo-chefe e diretor de Astronomia do Observatório Nacional, criador e primeiro diretor do Museu de Astronomia e Ciências Afins do MCT, no Rio de Janeiro. Membro titular do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Primeiro Prêmio José Reis do CNPq. Foi o primeiro brasileiro a ter um asteróide com seu nome. Autor de mais de 100 artigos de pesquisa publicados em revistas cientificas internacionais e mais de 85 livros, dentre eles: Dicionário Enciclopédico de Astronomia e Astronáutica, Lexikon (2009); Ecologie cosmique, une vision cosmique de l’écologie, Riveneuve Éditions, Paris (2007), Astronomia e budismo, Tóquio e Rio de Janeiro (2009).