Biografia intelectual de Francisco José de Oliveira Vianna (1883-1951)
Procurar conferir um sentido à vasta e diversificada produção intelectual de Francisco José de Oliveira Vianna não é tarefa das mais fáceis. Tendo começado a escrever publicamente em fins da década de 1900, e levando esta atividade até seus últimos anos de vida, fica a pergunta: é possível ordenar um conjunto de textos que se estende por quase meio século, e que suscitou inúmeras polêmicas? A resposta, que ensaiaremos aqui neste texto, não passará pela tentativa de atribuir um sentido unívoco ou estável à obra de Vianna, muito pelo contrário. A fim de captar justamente as matizes, ambiguidades e contradições, isto é, a complexidade interna às formulações do autor, o procedimento aqui adotado será acompanhar algumas inflexões decisivas em sua interpretação da sociedade brasileira. Noutras palavras, se há algum sentido a perpassar a obra de Vianna, ele é dinâmico, instável e contingente. E isso por dois motivos fundamentais: por um lado, porque Vianna escreveu num momento de intensas transformações econômicas, sociais e políticas; por outro, porque buscou permanentemente, com os seus textos, não apenas conferir inteligibilidade mas também atuar politicamente neste mundo em transformação.
Essas advertências se fazem necessárias na medida em que a imagem recorrente que temos até hoje de Oliveira Vianna ainda o associa ao quadro estreito do autoritarismo, racismo e conservadorismo, como se sua interpretação do Brasil se reduzisse unicamente a essas balizas. Não é o caso de negarmos estas dimensões de sua produção, mas de alargar os seus sentidos para além destes protocolos de leitura. Se é verdade que Vianna, como sugeriu José Murilo de Carvalho (1993), fora jogado aos infernos, especialmente por sua associação ao regime ditatorial do Estado Novo, o intérprete contemporâneo de sua obra precisa reabri-la e fazer novas perguntas. Como, por exemplo, indagar o quanto ela ainda pode nos interpelar no presente, mesmo passados quase cem anos da publicação de seu primeiro livro, Populações meridionais do Brasil (vol. 1). Nossa aposta é que uma boa chave de leitura do conjunto da produção de Vianna passa pelo seguinte fio investigativo: perscrutar como, ao longo de seus textos, o autor divisou as relações entre o rural e o urbano no Brasil. Essa linha de reflexão – além de colocar a interpretação de Vianna ao lado de outras obras clássicas do ensaísmo feito no Brasil, como as de Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Holanda e Caio Prado Jr. (Botelho, 2010) –, também permitirá enxergar melhor como o autor foi modificando a percepção destas relações em certos momentos cruciais de sua trajetória .
Este texto será dividido em quatro partes, a fim de tornar o nosso argumento mais claro. Na primeira, traremos uma breve notícia biográfica, além de uma pequena referência à produção de Vianna anterior a 1920, ano de publicação do primeiro volume de Populações meridionais do Brasil. Na segunda, esmiuçaremos as relações entre rural e urbano em Populações, posto que é neste livro que o autor formaliza de modo mais consistente a sua interpretação do Brasil. Na terceira, discutiremos alguns aspectos de sua passagem pelo cargo de consultor jurídico do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio (MTIC) do governo de Getúlio Vargas, bem como as possíveis consequências desta passagem para a sua reflexão sobre a sociedade brasileira, notadamente em Instituições políticas brasileiras (1949). Na quarta e última parte, por fim, recuperaremos os argumentos de Vianna nos dois volumes – publicados postumamente – de História social da economia capitalista no Brasil (1987), livros que alteraram os sentidos de vários dos argumentos apresentados em Populações, seu livro de estreia.
Esse modo de ordenar a extensa produção intelectual de Oliveira Vianna é, cumpre ressaltar, necessariamente seletiva. Ao iluminarmos como a relação entre rural e urbano estrutura a sua reflexão de ponta a ponta, colocamos inevitavelmente um pouco na sombra as dimensões político-institucionais de sua obra, embora elas não deixem de comparecer aqui. Nosso foco recairá nos aspectos mais propriamente sociológicos de sua reflexão, o que se revela na centralidade que conferimos a Populações, por um lado, e a História social, por outro. A despeito da parcialidade desse recorte, não podemos dizer que ele é inteiramente arbitrário, uma vez que o próprio Vianna sempre assumiu como pressuposto de sua análise a concepção de que as instituições políticas não atuam num “vazio de relações sociais”, e sim em interação contingente com as estruturas sociais às quais se ligam (Botelho, 2010: 60). Aliás, esta visão, que confere uma precedência lógica ao homo sociologicus sobre o homo politicus (Werneck Vianna: 1993: 373), está na base do chamado “idealismo orgânico” defendido pelo autor .
I
Como seria recorrente em vários intelectuais deste período (Miceli, 2001), Francisco José de Oliveira Vianna (1883-1951) pertencia a uma família de fazendeiros da antiga Província (atual Estado) do Rio de Janeiro em acentuado estado de declínio econômico. Sexto e último filho de D. Balbina e do coronel Francisco José, que faleceu logo após o nascimento do caçula, e criado no ambiente relativamente austero, porém letrado, da antiga fazenda do Rio Seco, em Saquarema, o rapaz de saúde frágil e algo introvertido encaminhou-se rapidamente para uma vida de dedicação aos estudos e aos livros, culminando numa trajetória de excelência escolar com a formatura no Colégio Pedro II. Segundo a exposição de seu biógrafo, Vasconcellos Torres (1956), o recém-formado tinha gosto por matemática, e queria encaminhar-se, a contragosto da mãe (que queria o filho bacharel em direito), para a Escola Politécnica. Porém, um engano nas datas dos exames vestibulares teria impossibilitado o seu ingresso na engenharia, levando-o a cursar direito na Faculdade Livre da antiga Capital Federal, a fim de não desperdiçar o ano. Esse incidente, aparentemente fortuito, não parece ter sido sem consequências. Embora a Faculdade de Direito fosse, àquela altura, a principal porta de entrada para o mundo intelectual, Vianna não parecia revelar aptidões para a vida de advogado ou dos fóruns, com a sua retórica ornamental, nem apresentava, por outro lado, pendores literários, como era comum em intelectuais do período. Após concluir o bacharelado em 1905, passou a lecionar matemática no Colégio Abílio, em Niterói, o que é significativo do seu possível desconforto com as alternativas profissionais vigentes. Podemos conjecturar que essa relação pouco convencional, por assim dizer, com o universo jurídico pode ter levado Oliveira Vianna a prezar mais a objetividade trazida pelas novas ciências sociais – que conhecera através, entre outros, de Silvio Romero, professor da Faculdade de Direito – em detrimento aos compêndios jurídicos e sua retórica peculiar. Segundo consta nos rastros de leituras deixados em sua biblioteca pessoal, na virada da década de 1900 para a seguinte Vianna se dedicara a ler intensivamente os autores da chamada Escola de Le Play, em especial os seus discípulos Henri de Tourville e Edmond Demolins, este último editor da revista La Science Sociale, de grande circulação naquele período.
Apesar da imagem assentada até hoje de que Vianna era um quase desconhecido até a publicação do primeiro volume de Populações meridionais do Brasil, em 1920, pesquisas empírico-documentais recentes têm relativizado essa afirmação. A despeito de sua alegada introversão, Vianna chegou a participar dos círculos intelectuais da então capital fluminense Niterói, tal como atesta a sua participação no Instituto Histórico Geográfico Fluminense, na Faculdade de Direito de Niterói e na Academia de Letras local, além de ter desenvolvido extensa atividade epistolar até o final da vida (Venâncio, 2003). Isso sem falar da já diversas vezes assinalada participação do autor nas reuniões organizadas por Alberto Torres em sua casa das Laranjeiras às segundas-feiras, onde se debatiam os rumos do país. Dessa relação com Torres, segundo as fontes disponíveis, além das conhecidas influências que o antigo presidente do Estado do Rio teria projetado na visão política do autor, também surgiria o estímulo à publicação de Populações e uma série de artigos em jornal, por parte de Vianna, em defesa das teses centralizadoras de Torres.
Aliás, a respeito de sua atividade na imprensa, o autor publicou bastante a partir de fins de 1900, em periódicos que iam do relativamente obscuro Vassourense até os mais importantes do período, como o carioca O Paiz. Nesses textos, invariavelmente polêmicos, Vianna já havia discutido, por exemplo, o “caráter do português, a função da aristocracia rural e a organização do Estado” (Bittencourt, 2011: 29), questões que retornarão com força em Populações, indicando, portanto, que o projeto de seu primeiro livro estava em curso há pelo menos dez anos.
Além disso, como demonstrou recentemente a minuciosa pesquisa de André Bittencourt (2011), também consta no acervo pessoal de Vianna um caderno cujo título, ao que tudo indica, seria Os clãs – ou, segundo a ortografia da época, Os clans. Redigido entre fins de 1908 e meados de 1909, este material revela certo impacto da leitura de Os sertões (1902), de Euclides da Cunha, perceptível sobretudo no modo pelo qual Vianna opera a cisão entre o litoral urbano e o sertão rural como se constituíssem duas sociedades diferentes, haja visto o isolamento da última frente às influências, para ele, negativas dos centros urbanos europeizados. Embora não seja o caso de esmiuçar aqui as teses expostas neste manuscrito, é digno de nota o tom de lamento que atravessa a sua redação no que tange ao avanço da urbanização, da comunicação e dos transportes no interior, agentes dissolventes dos antigos costumes do meio rural. Vejamos como Bittencourt reconstrói as impressões de Vianna deixadas no caderno:
A expansão mais rápida das linhas férreas em Minas, São Paulo e Rio levava a “civilização nos limpa-trilhos” e empurrava a “cândida e tranquila civilização rural” cada vez mais para o interior, onde mesmo as pequenas cidades de Minas e de São Paulo já perdiam os seus costumes e eram iluminadas pela luz elétrica, dispunham de serviços regulares de bondes e mesmo hábitos de vestimenta tipicamente urbanos (o “smart”) já se entreviam a léguas e léguas do litoral. Novamente em tom de lamento, Oliveira Vianna observa que não é de se admirar que nestas áreas “acabem as nossas antigas tradições nacionais: as formosas usanças ancestrais, as ruidosas festividades aldeãs, o culto larário dos santificados, o zelo doméstico da cristandade”, mas igualmente destaca que todas estas tradições, “viventes e puras”, se resguardem nas terras ardentes e rudes do nosso norte, onde não chegou ainda a civilização, porque ainda lá não chegaram a locomotiva e o jornal (Bittencourt, 2011: 81).
Podemos dizer que o caderno exprime a tensão rural/urbano em chave algo simplificada, já que a cada um dos termos caberia um juízo inequívoco, positivo e negativo respectivamente. Essa visão, no entanto, começaria a ceder lugar a uma interpretação mais matizada do mundo rural brasileiro, especialmente em uma série de artigos publicados na primeira metade da década de 1910. Em “Insurgências nos sertões” (1913) e em “Notas sobre o Contestado” (1915), por exemplo, o autor já anotava os efeitos negativos da preponderância da grande propriedade fundiária no interior do Brasil. Sem direito à propriedade, o homem livre pobre do campo estaria condenado à tamanha infixidez e nomadismo que, segundo Vianna, sua “tendência normal” seria sua gravitação “em torno de certas individualidades mais ativas, polares e magníficas, como os caudilhos, os bandidos e os messias” (Idem, 2011: 109). Daí os conflitos serem crônicos no meio rural, como demonstrariam cabalmente as violências associadas ao ‘banditismo sertanejo’ ou aos diferentes ‘messianismos’. Em Populações, essa visão mais negativa do mundo rural será retomada, sobretudo na segunda metade do livro – como veremos a seguir –, a despeito de conviver com os vários elogios a este mesmo mundo rural presentes no começo do livro (e que retomam certos argumentos já retratados no caderno Os clãs). Essa ambivalência de Vianna, que conhece expressão máxima em Populações, ganha maior inteligibilidade quando temos em vista o conjunto de trabalhos anteriores ao livro . Não à toa, o problema da relação de Vianna com o mundo rural brasileiro gerou uma série de polêmicas e de problemas interpretativos na fortuna crítica do autor (Carvalho, 1993; Werneck Vianna, 1993).
Em suma, essa breve referência à produção intelectual de Oliveira Vianna anterior a Populações nos permite problematizar a imagem de um autor inteiramente inédito antes de 1920. Para tal, basta lembrarmos que, entre outros artigos, pelo menos quatro capítulos (pouco modificados) de Populações já tinham sido publicados na prestigiada Revista do Brasil antes da aparição de seu primeiro livro, o que sem dúvida revela que seu nome já circulava amplamente entre os principais meios intelectuais do país.
II
O projeto intelectual de Populações meridionais do Brasil, como o próprio nome indica, tinha como base um princípio metodológico que visava a enfatizar, em vez do “preconceito da uniformidade” (Vianna, 2002: 925), as diferenciações econômicas, sociais, culturais e políticas que recortavam o território nacional. Não à toa, em sua projetada tetralogia, o autor dedicaria um livro para cada região (tal qual definidas por ele). Os dois volumes de Populações meridionais analisariam, respectivamente, os “tipos sociais” do centro-sul (paulistas, mineiros e fluminenses) e do extremo-sul (gaúchos). Já os dois volumes daquilo que constituiriam as Populações setentrionais, jamais escritos, se debruçariam sobre os “tipos sociais” do norte: o primeiro trataria do habitante das “regiões secas do Nordeste” (sertanejos) e o segundo da expansão deste “tipo social” pela hileia amazônica (Idem, 2002: 927). Portanto, conforme enuncia nas “Palavras de prefácio” que abrem o livro, Vianna assinala a existência de três “habitats sociais” distintos, que gerariam três “tipos sociais” dotados de dinâmica social e história diferenciada. No entanto, esta diferenciação não recortaria apenas a dimensão regional, atingindo também o eixo rural/urbano: no projeto de Populações seriam estudados apenas os “tipos rurais”, que subordinariam, em termos explicativos, os “tipos urbanos”. Nos termos de Vianna, os últimos não passariam, “depois de bem analisados, de reflexos ou variantes do meio rural”, sendo a sua posição “secundária” (Idem, 2002: 926). E, por fim, mais um recorte, agora cronológico: a análise se estenderia desde os inícios da colonização até o final do século XIX. Para Vianna, tanto a abolição da escravidão quanto a proclamação da república teriam alterado profundamente os fundamentos da sociedade brasileira, exigindo, neste sentido, “um estudo à parte, [...] complexo, capaz de permitir uma síntese segura da evolução brasileira nos últimos decênios” (Idem, 2002: 928). Sobre este estudo, que só surgiria, no entanto, muito tempo depois, falaremos na última parte deste texto.
Este preceito metodológico adotado pelo autor – a acentuação das diferenças, e não das semelhanças – é resultado, podemos dizer, de uma aplicação criativa e relativamente bem-sucedida dos métodos divulgados pela chamada Escola de Le Play, sobretudo por Edmond Demolins, cujo Les Français d’aujourd’hui (1898) lhe serviu como uma espécie de modelo para a confecção de Populações (Castro Faria, 2002; Carvalho, 2002; Bittencourt, 2011). Deste contato com a literatura francesa de corte sociológico, Vianna também extraiu elementos para realizar uma espécie de sociologia comparada, confrontando aspectos históricos e estruturais da sociedade brasileira (incluindo suas variações internas) com os de outras sociedades, em particular Portugal, a antiga metrópole, e os países anglo-saxões (Inglaterra e Estados Unidos), estes últimos tomados como exemplos de excelência societária e política. Noutros termos, a vigência deste critério explicativo que privilegia as diferenças implica também assumir como ponto de partida da análise a originalidade da experiência social brasileira, que, para Vianna, residiria sobretudo nas formas sociais assumidas pela propriedade fundiária. Vejamos este ponto com mais detalhes.
No registro do autor, o português do campo não conheceria “a grande propriedade, formada na imensidão territorial do Novo Mundo. É o homem do pequeno domínio, filho de uma sociedade densa, [...] que pratica a solidariedade vicinal e urbaniza a aldeia”. Já no caso brasileiro, muito pelo contrário, a presença de pequenos proprietários ou de núcleos urbanos no interior seria muito diminuta, quando não inexistente, haja vista a centralidade da grande plantação voltada para a exportação desde os primeiros tempos da vida colonial. A partir da constatação dessas diferenças marcantes na estrutura social da metrópole e da colônia, arremata o autor: “Nós somos o latifúndio. Ora, o latifúndio isola o homem; o dissemina; o absorve; é essencialmente antiurbano” (Vianna, 2002: 956). Esta originalidade em relação à metrópole seria, para Vianna, cheia de consequências para a dinâmica social e política brasileira.
A primeira é o caráter autossuficiente das grandes propriedades, fragmentando a estrutura social do mundo rural. Produzindo não só gêneros tropicais para exportação, mas também os seus próprios meios de subsistência, os latifúndios seriam, para Vianna, praticamente “autárquicos”, ao ponto de ser possível dizer que se a “sociedade se extinguisse em derredor dele, do seu domínio extrairia ele [o fazendeiro] o bastante para as suas necessidades fundamentais”. Inviabilizando, portanto, a cooperação entre os domínios rurais, esta característica “autárquica” chegaria a produzir uma “ação poderosamente simplificadora sobre toda a estrutura das nossas populações rurais” (Idem, 2002: 1021). Simplificação que seria patente na pouca importância assumida pelo comércio, pela indústria e pelos centros urbanos, todos atrofiados pelo “centripetismo absorvente” do grande domínio rural. Daí a afirmação taxativa de Vianna: “só os grandes senhorios rurais existem. Fora deles, tudo é rudimentar, informe, fragmentário” (Idem, 2002: 1022-3).
Contudo, se o latifúndio “autossuficiente” simplifica e fragmenta a estrutura social, tampouco haveria algum tipo de ordenação mais forte internamente aos grandes domínios – e daí, para Vianna, a distância do passado colonial em relação ao feudalismo europeu. Para o autor, haveria uma certa “frouxidão” da estrutura social, especialmente na relação entre os fazendeiros e aqueles que não eram nem escravos, nem proprietários rurais. Refiro-me à crescente massa de homens livres e pobres, chamada por Vianna no ensaio de “plebe rural”. Se a atrofiada vida urbana não poderia absorvê-los, posto que o latifúndio atraía tudo para dentro de seus domínios, era de se esperar que eles também caíssem na órbita de influência dos grandes proprietários. Porém, Vianna assinala que as relações entre os fazendeiros e os homens livres dos campos eram das mais precárias. E enumera algumas razões para isto: (a) o peso da escravidão, que praticamente dispensava o uso trabalhadores livres; (b) o caráter ameno dos climas tropicais e a generosidade da terra, facilitando a vida dos homens livres e pobres, que não precisavam vender sua força-de-trabalho para garantir a subsistência; e (c) o tamanho excessivo das grandes propriedades rurais, que jamais incorporavam à produção para exportação o conjunto das áreas privadamente controladas. Nestas áreas deixadas ociosas pelo latifúndio, encontravam abrigo justamente os “agregados”, os “moradores” e os “foreiros”, cujas obrigações em relação ao proprietário eram poucas e de curta duração. Noutras palavras, a “plebe rural”, embora sem acesso à propriedade, não estava inteiramente apartada da posse da terra, e neste sentido não precisava se converter na figura do trabalhador assalariado.
Diante dessas condições, assinala Vianna, as relações entre os proprietários de terra e os homens livres pobres “não se podem apertar”, “não adquirem, nem podem adquirir, solidez, permanência, estabilidade” (Idem, 2002: 1025), tendo como consequência a extrema dispersão do trabalhador rural. Nada o prendia por muito tempo a um latifúndio, já que o fazendeiro que o abrigava não era, a rigor, seu patrão, no sentido estritamente econômico do termo – não havia interdependências sociais e econômicas necessárias entre uns e outros.
No entanto, apesar desta enorme fragilidade nas relações entre os senhores de terra e os pobres livres do campo, estes últimos tampouco ficaram imunes à força absorvente do grande domínio rural. Em meio à fragilidade das formas de coesão social existentes, emergiu com força uma única forma de solidariedade social, nomeada por Vianna de “clã rural”. Os clãs seriam grupos sociais que se constituíram “desde o primeiro século, nos campos, em torno e sob a direção suprema do grande proprietário de terras”. Toda a população rural, diz o autor, “de alto a baixo, está sujeita ao mesmo regime, toda ela está agrupada em torno de chefes territoriais” (Idem, 2002: 1035, grifos no original). Ora, se as relações entre os fazendeiros e a massa dos homens livres e pobres eram, como vimos, das mais frágeis e contingentes, como é possível que a população rural estivesse sujeita ao domínio dos grandes proprietários?
Para o autor, os mesmos processos que tornariam as relações de solidariedade entre a “aristocracia senhorial” e a “plebe rural” (termos de Vianna) frágeis, frouxas, instáveis e desnecessárias no plano econômico e social, conforme tratado acima, concorreriam para fortalecê-las para efeitos políticos. Isto acontecia porque, já que tudo gravita em torno do latifúndio, também as instituições públicas acabavam caindo em sua órbita. Afinal, os demais grupos sociais, atrofiados devido à autossuficiência das grandes propriedades rurais, não conseguiam contestar-lhes efetivamente o poder. De posse dos recursos materiais e simbólicos disponíveis nos cargos públicos, os “chefes de clã”, sempre em disputas uns com os outros, usavam as instituições municipais e os aparelhos da justiça na defesa de seus interesses particulares – o que Vianna chama de “anarquia branca”.
Nesta situação de “mandonismo local” (Idem, 2002: 1037), não restava ao homem livre destituído de propriedade senão abrigar-se à sombra de um potentado rural. Através de um “sistema de reciprocidades” assimétricas (Botelho, 2007: 53), típicas das relações de favor, o homem livre pobre, em troca de proteção – especialmente em relação à facciosidade da justiça, às arbitrariedades do recrutamento militar e às violências dos capitães-mores (Vianna, 2002: 1036:1043) –, ligava-se a um “chefe de clã”, a quem dedicava lealdade e conferia prestígio. Nas palavras do autor:
Só à sombra patriarcal deste grande senhor de engenhos, de estâncias, de cafezais vivem o pobre e o fraco com segurança e tranquilidade. Pela sua riqueza, pelo seu poder, pelo seu prestígio, mesmo pela sua força material, só ele é capaz, neste regime de pilhagem e prevaricação gerais, de reagir contra as arbitrariedades e as injustiças. Só ele, no mundo rural, tem meios para dar à sua patronagem uma eficiência prática, que nem a patronagem do cura, ou do médico, ou do advogado, ou mesmo da autoridade local possui (Idem, 2002: 1044-1045).
Assim, “depois da solidariedade parental”, acrescenta Vianna, seria o “clã fazendeiro a única forma militante de solidariedade social em nosso povo” (Idem, 2002: 1047, grifos no original). A predominância histórica deste tipo de solidariedade privatista, que restringia os sentimentos de pertencimento social às facções rurais que dominavam a vida dos campos, teria gerado um correspondente “espírito de clã”, isto é, uma espécie de cultura política, um modo de orientação na vida pública que levava a uma indistinção em relação aos valores e práticas típicos do mundo privado. O predomínio desta forma de solidariedade constituiria, para o autor, um dos principais problemas para a organização da sociedade brasileira, posto que redundaria na dificuldade ou mesmo impedimento da criação de instâncias de livre associação entre os indivíduos que visassem aos interesses públicos. Noutras palavras, o papel desempenhado pelo latifúndio autossuficiente na formação da sociedade brasileira teria levado a uma restrição das práticas associativas ao âmbito privado, doméstico e familiar, ao que Vianna dá o nome de “insolidariedade”. O persistente baralhamento entre as esferas pública e privada, ou melhor, a atrofia da primeira diante do peso do privatismo no país, seria explicado, portanto, pelas especificidades sócio-históricas da formação da sociedade brasileira.
Nesse quadro histórico traçado em Populações, vemos que o legado de quatro séculos de latifúndio está longe de ser positivo. Pelo contrário, ele é crítico no seu aspecto mais decisivo: no próprio caráter da propriedade fundiária. Residiria em sua desmedida amplitude a causa da restrição da ação coletiva à esfera privada, inviabilizando, no mesmo passo, o autogoverno e a perseguição de interesses coletivos de caráter geral, bases sociais necessárias, segundo Vianna, para o bom funcionamento das instituições liberais implantadas desde a Independência . Ao final do ensaio, ficamos, portanto, à busca de soluções para combater o “espírito de clã” e a “insolidariedade” que ele acarreta. Logo de saída, a expectativa de que a urbanização pudesse gerar algum tipo de inflexão histórica é descartada pelo autor, que vê nos “tipos urbanos” pálidos reflexos dos “tipos rurais”.
A revisão do exclusivismo agrário, que Vianna chegara a mencionar em sua atividade na imprensa anterior a Populações, não aparece articulada no ensaio, mas é sugerida em mais de um ponto. Poderíamos mesmo dizer que algum tipo de reforma agrária seria a resposta mais lógica à própria armação teórico-metodológica do autor, porquanto Vianna enxerga a dinâmica da sociabilidade como cronicamente dependente da estrutura da propriedade agrária. É digno de nota que o autor veja na ausência da pequena propriedade “uma das falhas mais graves de nossa organização coletiva” (Idem, 2002: 1028), uma vez que ela possibilitaria, à maneira das sociedades anglo-saxônicas, que ele tanto admirava, a conformação de uma “classe média” que pudesse contrabalançar o poder dos grandes domínios rurais e seus efeitos dispersivos. Ele mesmo aponta algumas causas da precariedade da pequena propriedade, como a hegemonia das culturas que exigem grandes extensões de terra – sobretudo a cana-de-açúcar e o café – e a atrofia concomitante dos núcleos urbanos do interior, dificultando a criação de mercados para os seus produtos. Em suma, Vianna mostra um meio social no qual “tudo trama (...) e conjura contra a pequena propriedade, o seu desenvolvimento, a sua prosperidade, a sua preponderância” (Idem, 2002: 1.032). No entanto, o ensaio não termina com propostas de transformação radical do mundo agrário brasileiro.
O que aparece no horizonte de Populações é um outro personagem, que inclusive torna problemático o andamento do livro. Quebrando a impressão de reiteração permanente das formas de sociabilidade gestadas no latifúndio, surge um outro protagonista do processo histórico, capaz de pôr em movimento esta sociedade, apanhado por Vianna em Populações quase que in statu nascendi: o Estado. Grosso modo, é o progressivo, mas complicado e acidentado, enraizamento social da ideia de Estado o que confere certa direcionalidade ao ensaio, num processo que se inicia com a ação dos capitães coloniais nos primeiros séculos até culminar no centralismo monárquico do Segundo Reinado. Embora pondere acerca de transformações importantes na estrutura social que teriam sido capazes de viabilizar maior penetração, força e legitimidade aos poderes públicos, como a fragmentação dos clãs rurais no centro-sul e a sedentarização social propiciada pelo predomínio das culturas agrícolas em relação às atividades pastoris – a partir do século XIX, estas últimas continuariam fortes apenas no norte e no extremo-sul do país –, seria antes um certo voluntarismo estatal, divisado sobretudo na obra dos conservadores do Império, o principal corretivo aventado por Vianna no combate ao “espírito de clã”.
Assim, assistimos ao longo de Populações o contraste permanente entre os ideais de liberdade e autonomia encampados pela elite pós-independência e as realidades de uma sociedade rural incapaz de gerar os portadores daqueles valores, como vimos acima, numa espécie de crônica das ilusões perdidas quanto às possibilidades do liberalismo no Brasil. Daí que a maturidade do Estado, no plano de Populações, apareça justamente no Segundo Reinado, quando se produziu certo consenso político a respeito das necessidades da centralização estatal numa sociedade “clânica”, isto é, incapaz de se autogovernar. A retomada dos ideais descentralizadores e federativos na república – horizonte imediato da escritura de Populações – acabaria agravando enormemente este problema, em vez de atacá-lo.
Mas porque o recurso a este personagem, o Estado, único capaz de movimentar realmente o livro (e a sociedade nele retratada), torna o seu andamento problemático? Porque o voluntarismo da saída centralizadora se casa mal com o raciocínio que dá estrutura ao livro, que é de caráter sociológico. Só para darmos um exemplo: qual grupo social poderia dar um sentido ‘público’ à ação do Estado se o “espírito de clã” perpassaria o conjunto da sociedade brasileira? Além disto, a defesa do centralismo estatal também se torna ambígua, haja vista a constante referência positiva às sociedades e aos ideais políticos dos anglo-saxões ao longo do ensaio. E, mais ainda, a justificativa do Estado centralizado a partir do diagnóstico da “insolidariedade” também é problemática, pois a negação da “insolidariedade” deve passar necessariamente por algum tipo de ativação da ação coletiva e do autogoverno. Quer dizer: Vianna defende uma saída autoritária a despeito da maneira, por assim dizer, liberal de inquirir sobre as falhas e as possíveis soluções dos problemas do Brasil agrário. Não por acaso, essas tensões na fatura de Populações geraram um verdadeiro nó interpretativo em sua fortuna crítica (Cf. Lamounier, 1977; Santos, 1998).
III
A despeito destes problemas, o livro de Vianna, muito bem recebido pela crítica à época de seu lançamento, foi fundamental na rotinização da virada antiliberal experimentada pela intelectualidade brasileira no decorrer dos anos 1920. Ao longo dessa década – em publicações como O idealismo na evolução política do Império e da República (1922), Evolução do povo brasileiro (1923), O ocaso do Império (1925) e Problemas de política objetiva (1930) –, o autor, ao lado de outros intelectuais e publicistas, jogou água no moinho da desconstrução da cultura política liberal, legitimando uma crescente atuação do Estado nas diferentes esferas da sociedade. Duas cartas endereçadas a Vianna, recolhidas por Vasconcellos Torres, dão conta dessa acolhida favorável aos seus argumentos. A primeira, de Monteiro Lobato (que também foi o editor de Populações), diz que enviará um exemplar do ensaio de 1920 “ao [Arthur] Bernardes e outro ao Washington [Luís] intimando-os a lerem-no. O futuro presidente tem que ser orientado por ti” (apud Torres, 1956: 62). Mais enfático ainda, Miguel Couto chega a conjecturar outras possibilidades de divulgação da obra de Vianna. Ele afirma que, se tivesse poderes discricionários, mandaria publicar “diariamente, por tempo indeterminado e por conta do governo, em todos os jornais do Brasil, o prefácio do Dr. Oliveira Vianna à sua obra Populações meridionais do Brasil” (Idem, 1956: 61).
Essa visibilidade pública de Oliveira Vianna certamente pesou na escolha de seu nome por Getúlio Vargas, em 1932, para ocupar o importante posto de consultor jurídico do recém-criado Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio (MTIC). Legislando, através de pareceres técnicos, sobre complicados problemas de direito trabalhista e sindical, Vianna atuou como um verdadeiro statemaker, isto é, como um construtor de estruturas estatais de regulação da ação coletiva dos principais atores sociais urbanos à época – os sindicatos patronais e de trabalhadores das grandes cidades (Howes, 1975; Gomes, 1993 e 2009; Brasil Jr., 2007). Cabe lembrar que, no contexto da Revolução de 1930, a legislação trabalhista se limitou aos principais centros urbanos do país, o que não deixa de ser, no caso de Vianna, um tanto irônico. Vianna, que se dedicara intensamente ao estudo das populações rurais – para ele, amorfas e fragmentadas –, agora se via às voltas com a codificação da ação coletiva dos setores mais organizados das populações urbanas . E, a fim de justificar a política centralizadora e autoritária do Estado no tocante à matéria sindical – sindicato único e tutelado pelo Estado, especialmente no caso dos sindicatos operários –, Vianna recorreu em várias oportunidades à tese da “insolidariedade”, quer dizer, amparou-se no diagnóstico da persistência do “espírito de clã” para deslegitimar publicamente a reivindicação de autonomia e liberdade para os sindicatos.
Para Vianna, sem os controles estritos do Estado, as associações sindicais, mesmo em cidades densamente povoadas, serviriam apenas para lutas “clânicas”, “facciosas” e “personalistas”, e não para a defesa dos interesses coletivos da categoria profissional. Apenas o sindicato tutelado e fortemente controlado pelo Estado poderia se tornar, nos seus termos, numa “escola de solidariedade”. É neste momento em que aparece muito claramente, nos textos do autor, o corporativismo sindical como uma possível solução aos dilemas da ação coletiva no Brasil:
O grande movimento no sentido da sindicalização, que agora se inicia em nosso país, é assim o primeiro passo para a organização social do nosso povo, pela qual já vinha bradando, desde 1904, o nosso Sílvio Romero. Num povo como o nosso, de formação antiurbana, guardando ainda no seu subconsciente coletivo uma tradição quadrissecular de centrifugismo, deixada pelos “pioneiros”, “desbravadores” e “latifundiários” donde provém, num povo assim profundamente animado do espírito individualista, o sindicalismo representa o papel de um agente corretivo ou retificador: é, realmente, o processo mais eficaz, rápido e seguro para a intensificação e o desenvolvimento entre nós dessas formas de solidariedade social e de “consciência de grupo”. Formas que o brasileiro não pôde constituir e cristalizar durante os quatro séculos de sua história social (Vianna, 1943: vii).
Essa posição de Vianna – que não deixou de suscitar várias polêmicas, em especial com os intelectuais católicos, por um lado, e com os intelectuais liberais, por outro – encontra-se reunida nos livros Problemas de direito corporativo (1938) e Problemas de direito sindical (1943). Contudo, sua longa permanência à frente da consultoria jurídica do MTIC – Vianna trabalhou neste órgão durante oito anos, entre 1932-1940 – atesta a sua força e sua sintonia com os objetivos mais amplos de centralização do poder que culminou no golpe do Estado Novo, em 1937. Ao que tudo indica, a sua saída em 1940 se deveu a agudos atritos com certos setores do empresariado paulista, que resistiram intensamente à imposição dos controles estatais estipulados por Vianna ao seu principal órgão de classe, a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) (Costa, 1999) .
Terminada sua experiência como statemaker – Oliveira Vianna passaria a ocupar, a partir de então, o cargo de ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) –, o autor se volta mais uma vez à análise da formação da sociedade brasileira, recuperando parcialmente os argumentos já apresentados em Populações. Digo parcialmente porque a experiência de Vianna no Estado não foi sem consequências para a sua atividade intelectual. É o que veremos rapidamente a seguir.
A despeito das inúmeras “vitórias” quando de sua atuação como consultor jurídico do MTIC – Oliveira Vianna deixou marca expressiva na criação da Justiça do Trabalho e nas leis de sindicalização, além de legar jurisprudência para a Consolidação das Leis de Trabalho (CLT), de 1943 –, o que vemos em sua produção da década de 1940 é um maior ceticismo quanto às possibilidades de combate ao “espírito de clã” e às debilidades associativas que ele acarreta. Em Populações, como vimos, o Estado – centralizado e unitário – aparecia no horizonte como um ator capaz de pôr em movimento uma sociedade que, deixada a si mesma, apenas reiteraria as formas seculares de sociabilidade gestadas nos grandes domínios agrários. Já em Instituições políticas brasileiras, livro publicado em dois volumes em 1949, Vianna chega a dizer, em relação ao “espírito de clã”, que não seria possível “mover contra ele uma política de eliminação completa, de expurgo integral”, posto que ele teria constatado a “vigorosa tenacidade deste nosso complexo político na sua capacidade de resistência a qualquer inovação ou reforma, que o contrarie ou o desconheça”. E, mais ainda, chega mesmo a esboçar uma positivação da experiência clânica brasileira, que, além de não ser única no mundo , não deveria alimentar a má-consciência nacional: “Não há razão para nos envergonharmos de nossos clãs, da nossa politicagem e dos seus ‘complexos’ políticos: somos assim, porque não podemos deixar de ser assim; e só sendo assim é que poderemos ser como nós somos” (Idem, 1982: 713).
Alçado à condição de “complexo cultural”, o “espírito de clã” ganha, por assim dizer, uma certa autonomia explicativa em relação às suas bases sociais, tornando-se, por isto mesmo, na economia interna dos argumentos do autor, mais persistente. Se em Populações a “insolidariedade” é apresentada como consequência da simplificação da estrutura agrária brasileira, dominada por latifúndios autossuficientes, em Instituições, por sua vez, ele é visto como um “complexo” que tende à estabilidade e a resistir às inovações, repondo-se indefinidamente nas práticas associativas, tanto no campo quanto na cidade.
Esse ceticismo quanto ao poder do Estado, contudo, não significa nem o seu descarte, por um lado, nem um afastamento da centralização do poder, por outro. Em Instituições, Vianna defende ainda o uso da “técnica autoritária” no encaminhamento de reformas, exemplificando com o sucesso, segundo o seu ponto de vista, da sindicalização profissional urbana. A “técnica liberal”, cujo princípio seria a “liberdade”, e não a “obrigação”, mostraria o seu fracasso patente na legislação de sindicalização rural, empreendida já no final do Estado Novo (Decreto-lei nº 7038 /1944), quando Vianna não era mais consultor jurídico do MTIC. Criticando este dispositivo, que seria o primeiro “que fazíamos para levar as classes rurais, diretamente, a uma experiência de solidariedade profissional”, sua ineficácia se devia porque esta lei não estabelecia
nenhuma obrigação de solidariedade para elas: – era, como se diz, uma lei liberal. Quer dizer: – às nossas classes rurais é que incumbia mudarem, espontaneamente, de conduta, abandonando a sua velha tradição de isolamento, de particularismo e de insolidariedade social” (Idem, 1982: 687).
Remata afirmando que, no Brasil, os casos de legislação eficiente se caracterizam por um traço comum: “em todas elas há uma utilização direta ou indireta do princípio fundamental da técnica autoritária. Quero dizer: há sempre um modicum de coação” (Idem, 1982: 711). Contudo, apesar de serem possíveis as transformações através do Estado, Vianna pondera que, mesmo com a centralização do poder, mesmo com uma “política de neutralização, tanto quanto possível, dos efeitos dos espíritos de clã na nossa vida pública”, isso se daria, “de certo, muito relativamente e assim mesmo em parte” (Idem, 1982: 713). O Estado, ainda que “armado de faculdade e poderes excepcionais que não possuía o Estado Liberal, pode muito, sem dúvida, mas não pode tudo” (Idem, 1982: 703).
Neste sentido, a esperança de Vianna na completa superação dos problemas associativos, ao que parece, foi desfeita, já que o ator por excelência da transformação da realidade parecia-lhe limitado para tais fins: o Estado. Se, no livro de estreia, usava a imagem de que o passado novo do Brasil conservava os moldes ainda quentes (Idem, 2002: 924), sendo possível, portanto, mudá-los de forma, este passado agora parecia enrijecido, pouco permeável à ação criadora do presente. “O que devemos fazer é aceitar resolutamente”, escreve em Instituições, “a nossa condição de brasileiros e as consequências da nossa ‘formação social’; – e tirarmos todo o partido disto” (Idem, 1982: 713).
Ora, se as formulações de Vianna presentes em Populações, redigido na década de 1910, já eram problemáticas por desconsiderarem o impacto da experiência urbana na reorientação das condutas, na década de 1940, com o país em marcha de industrialização acelerada, a reiteração do mesmo argumento o torna quase inverossímil. Como desconsiderar as transformações sociais em curso, sobretudo para um expectador privilegiado como Oliveira Vianna, que, de seu cargo como consultor jurídico do MTIC, observou de perto os atores sociais mais dinâmicos da ordem urbana emergente? Como veremos a seguir, o autor não desconsiderou por completo o avanço do capitalismo industrial na sociedade brasileira, dedicando a este assunto dois volumes inacabados, que foram publicados postumamente em 1987. No entanto, essa referência explícita à industrialização e a seus efeitos no país fez-se às custas de minimizar, mais uma vez, os seus impactos na sociedade brasileira. E, o que é bastante curioso, Vianna realiza este movimento argumentativo recuperando várias das hipóteses de Populações, invertendo, no entanto, em várias ocasiões, os sinais do primeiro livro.
IV
A tensa relação com os industriais paulistas nos períodos finais de sua atuação como consultor jurídico do MTIC, ao que parece, não foi sem consequências para sua visão da sociedade brasileira. Isso transparece de modo patente nos dois volumes que Oliveira Vianna deixara quase prontos antes de falecer em 1951, História social da economia capitalista no Brasil, publicados postumamente apenas em 1987. Aí, reaparecem vários argumentos que o autor já havia desenvolvido em Populações, mas com inversões de sentido às vezes desconcertantes para o leitor acostumado com o ensaio de 1920. E, destas inversões, talvez a mais significativa seja mesmo a sua reavaliação da importância de São Paulo na dinâmica da sociedade brasileira e, associada a ela, o equacionamento agora negativo dos traços típicos dos anglo-saxões, especialmente dos norte-americanos. Embora não tenhamos podido tratar desta questão aqui, em vários textos dos anos 1910-1920 Oliveira Vianna chegou a aproximar, e de maneira elogiosa, os paulistas aos anglo-saxões – em diálogo direto, portanto, com alguns estudiosos do “bandeirismo” e adeptos da tese da superioridade de São Paulo, como Paulo Prado, Afonso D’Escragnolle Taunay e Alfredo Ellis Jr. . Em História social, por sua vez, os paulistas, os “nossos Yankees”, tal qual seus irmãos do norte, seriam os principais responsáveis pelos graves conflitos sociais trazidos pelo grande “industrialismo” do qual seriam os portadores. Apesar da viravolta nos argumentos do autor, nesses dois volumes póstumos retornam com a mesma força que em Populações a importância das diferenças regionais e o argumento de que o mundo rural continuaria a ser núcleo dinâmico explicativo da sociedade brasileira. No entanto, o acionamento dessas duas dimensões ganha outro sentido nesse contexto, funcionando como uma espécie de contraprova da ‘inviabilidade’ de se generalizar a experiência urbano-industrial de São Paulo a toda a sociedade brasileira. Para Oliveira Vianna, a força do país agrário e de sua mentalidade “pré-capitalista” persistiria ainda por longo tempo, a despeito das várias evidências em contrário.
Vejamos com mais vagar, pois, os argumentos de História social. A visão negativa dos anglo-saxões se expressa de modo claro na mudança de seus referenciais teóricos. Em Populações, a excelência societária dos anglo-saxões em geral se amparava basicamente nas referências de seu autor dileto, Edmond Demolins, que escreveu À quoi tient la superiorité des Anglo-saxons, e a dos norte-americanos, em particular no quadro entusiástico pintado por Henry van Dyke em The spirit of America. Em História social, tanto europeus quanto norte-americanos, especialmente estes últimos, são postos sob a rubrica do tipo psicológico do “supercapitalista”, para cuja caracterização recorre, dentre outros, a Werner Sombart e Lewis Mumford. Essa suposta ‘atualização’ de suas referências teóricas cumpre função definida: a crítica negativa ao mundo das grandes metrópoles industriais e aos tipos humanos aí gerados. Se antes os anglo-saxões eram sinônimos de devoção enérgica e organizada aos interesses da coletividade, agora o businessman é caracterizado por seu “concorrencismo agressivo”, pela “subordinação da força do mecanismo do Estado aos seus interesses” (Idem, 1987a: 47) e pela “enfocação obsidional da ideia de lucro”, o que lhe cegaria quaisquer “outras preocupações éticas” (Idem, 1987a: 46) .
Para Oliveira Vianna, a atuação deste “supercapitalista sombartiano”, associado ao crescimento das aglomerações urbanas e operárias e ao surgimento das empresas “gigantes” ou “mamutes” (devotadas ao maior acúmulo possível de capitais), teria acarretado o surgimento da “questão social” e de “todo o cortejo das suas manifestações de violência: – greves, lock-outs, etc.” (Idem, 1987b: 121). Além de uma avaliação negativa dos conflitos entre capitalistas e trabalhadores, este argumento revela também mais uma inversão de sinais em relação a Populações. No livro de 1920, a dispersão populacional, tal como se apresentava na sociedade brasileira, seria antes um problema, posto que agravaria a “insolidariedade”. Agora, as metrópoles “supercapitalistas” constituiriam fontes de conflitos inextricáveis. Aliás, em diferentes momentos de História social, que qualificaremos mais à frente, certas características negativas da sociedade brasileira retratadas pelo autor em Populações aparecerão em chave positiva como ‘antídotos’ à expansão do “supercapitalismo” pelo Brasil.
O quadro pessimista pintado por Oliveira Vianna a respeito da expansão do mundo urbano-industrial – ou, pelo menos, de suas manifestações mais intensamente “supercapitalistas” – não chegaria, entretanto, a um beco sem saída. Pelo menos dois processos, um político-econômico e outro social, estariam contribuindo para refrear os excessos do “rude materialismo monetário” (Idem, 1987a: 51), inclusive no Brasil. O primeiro, que se manifestaria tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, seria “o novo ciclo da economia capitalista”, caracterizada não mais por mercados desregulamentados (e seus conflitos) e sim pelos exemplos “do Dirigismo, do Corporativismo e do Socialismo” (Idem, 1987a: 52, grifos no original). Em termos brasileiros, esta reação ganharia expressão prática com a política social da Revolução de 30, que teria logrado, já em seus inícios, “atalhar os males desta brusca evolução supercapitalista da nossa estrutura econômica”, impedindo que “a injustiça social aqui [...] acabasse explodindo numa revolução social” (Idem, 1987b: 123, grifos no original). O segundo, para qual o autor recorre às formulações de Thorstein Veblen, diria respeito à tendência das segundas e terceiras gerações das famílias ligadas aos “capitães de indústria” ao abandono das preocupações exclusivistas de lucro, que cederia lugar ao desfrute do ócio e do consumo conspícuos. Esta dissolução do ascetismo dos primeiros industriais ao longo do tempo, constituindo uma leisure-class em seus descendentes, cumpriria a função salutar de moderar as modalidades agressivas de ação típicas do “supercapitalismo”. A despeito da “ostentação insolente de suas riquezas”, esta leisure-class atuaria em sentido claramente pré-capitalista. No Brasil, essas tendências lhe pareciam particularmente visíveis em São Paulo, principal floração “supercapitalista” do país e, em menor grau, no Rio de Janeiro.
Portanto, após anotar as várias consequências negativas do “supercapitalismo”, no Brasil e no mundo, Vianna termina minimizando os seus efeitos a longo prazo, como se houvesse uma natural fadiga societária por conta de tamanha obsessão monetária. Não por acaso, o autor abre os dois volumes de História social afirmando que, ao contrário do que havia pensado originalmente, a economia capitalista, ou pelo menos o seu “tipo psicológico” mais característico, não havia dominado todo o território nacional. Pelo contrário, ele afirma que, “desde cedo”, reconheceu que “havia dois Brasis – e que a parte do nosso país superindustrializada pelo grande capitalismo moderno, de tipo sombartiano, era muito pequena, reduzida mesmo a um pequeno setor geográfico no sul do país” (Idem, 1987a: 20, grifos no original). Ora, este setor muito pequeno era, para Vianna, basicamente a cidade de São Paulo, uma vez que o industrialismo do antigo Distrito Federal se ampararia em pequenas e médias indústrias, com baixa concentração operária. De acordo com Vianna, a “Pauliceia”, termo que usa em vários momentos para descrever a capital paulistana, apresentaria um grau tão elevado de concentração econômica que chegaria até mesmo a superar “os índices encontrados, em 1930, nos sistemas das nações altamente supercapitalizadas” (Idem, 1987b: 235). Daí que, sobretudo nas décadas de 1920 e 1930, é que teriam se relevado nesta região do país um clima propício aos antagonismos de classe típicos das sociedades “supercapitalistas”. Nas palavras do autor:
Somente agora, há um quarto de século, mais ou menos [...] é que estes partidos socialistas, de agitação e revolução, começaram a encontrar os primeiros fundamentos de sua razão de ser no Brasil. Com a sua megalomania do “colossal” e do “gigantesco”, com as suas “concentrações” e “integrações” tecnológicas e o imperialismo absorvente dos seus holdings – este surto capitalista é que estava preparando a constituição, aqui, de um ambiente de antagonismos sociais e de lutas de classes, que acabariam por transportar a virulência dos seus ódios e os seus métodos de ação direta para estas terras pacíficas e fartas do Pré-Capitalismo e do Paternalismo industrial (Idem, 1987b: 123).
Os termos finais da citação acima constituem o leitmotiv dos dois volumes de História social – a oposição “supercapitalismo”/“pré-capitalismo”. O sentido mais geral destas publicações póstumas é entender por que, a despeito da floração paulistana do “supercapitalismo” no país, ela seria incapaz de se generalizar, alterando os padrões de sociabilidade gestados em quatro séculos de vida rural. De um lado, como comentamos mais acima, a Revolução de 30 teria sufocado a difusão de suas consequências mais negativas antes mesmo que o “supercapitalismo” pudesse se impor a todo o país. De outro, o autor realiza um verdadeiro inventário das impossibilidades de evolução do “grande industrialismo” no Brasil, como se depreende da leitura de toda a primeira parte do segundo volume de História social. Dentre outras, estão as seguintes: (a) a enormidade do território levaria a uma inevitável “regionalização” dos mercados, impedindo que as indústrias paulistanas varressem, com a sua concorrência, as pequenas indústrias locais; (b) a baixa densidade demográfica reduziria o tamanho dos mercados e, portanto, o volume total da produção; (c) o “ruralismo” da população brasileira, e o nível geral de pobreza da população, impediria uma elevação dos padrões de consumo; (d) a pouca penetração do capital estrangeiro, pelo menos até 1920 (Idem, 1987b: 15-63).
Além destas dificuldades práticas, por assim dizer, o “supercapitalismo” também não seria capaz de se impor como mentalidade dominante por conta do predomínio dos valores “pré-capitalistas”, herdados do mundo rural. Aliás, neste particular, enxergamos uma incrível inversão de sentidos em relação a Populações. Em História social, seriam justamente as relações frouxas, instáveis e desnecessárias entre a “aristocracia” e a “plebe rural” as responsáveis pela não existência de conflitos de classe na sociedade brasileira. Se no livro de 1920 a “infixidez” da população agrária constituiria a principal causa do “espírito de clã” e da “insolidariedade”, agora ela é vista como benéfica porquanto não teria assentado uma tradição de antagonismos sociais, refreando os aspectos mais agudos do “supercapitalismo”. A amenidade dos climas, o trabalho escravo, a desmedida extensão do território e das propriedades e a facilidade de emigração (Idem, 1987b: 104-113), tal qual já descrito em Populações, agora conspirariam para aproximar – e não distanciar – patrões e empregados. Na passagem abaixo, é possível ver esta viravolta nos argumentos de Vianna, que inclusive faz menção ao seu primeiro livro:
[...] a desorganização geral do povo. É também uma causa geral: encontramo-la presente e atuante na indústria, no comércio e, principalmente, na agricultura. Esta carência de organização se prende a essa causa geral, que também é característica do nosso povo – e que é a fraqueza do espírito de solidariedade social, a quase ausência dos hábitos de cooperação profissional, como já assinalei em Populações Meridionais e nos Problemas de Direito Sindical. Daí não terem as nossas classes produtoras, patronais e operárias, consciência de classe e, em consequência, organização de classes [...] / Nos campos: – como já vimos em outro livro, as classes populares, de moradores ou colonos – em vez de se organizarem autonomamente, organizaram-se em torno do proprietário rural, do “senhor de engenho” – o que impediu a emergência e constituição deste estado puramente de conflitos, que encontramos na história agrária da Europa (Idem, 1987b: 103).
Em suma, vemos que, a despeito de tratar diretamente do mundo urbano-industrial que emergia na sociedade brasileira, História social retira-lhe qualquer potência histórica, descrevendo-o como incapaz de reverter totalmente os padrões seculares – e rurais – de sociabilidade. Trocando em miúdos, a transformação material acarretada pelo capitalismo não significaria necessariamente uma adesão ao seu estilo de vida materialista, de impacto muito limitado no conjunto do país. Talvez no futuro pudesse se sentir mais pronunciada a sua influência, mas Oliveira Vianna tem as suas dúvidas:
Enquanto este futuro distante não nos chega, é certo que as nossas empresas industriais continuarão (salvo talvez na Paulicéia) a ser, ainda por muito tempo, o que até agora têm sido – bases de vivência dos seus proprietários, dirigidas do bom e tradicional modo pré-capitalista – num espírito de pura economia de manutenção e de status (Idem, 1987b: 63, grifos no original).
Se é verdade que essa visão de um “pré-capitalismo” crônico da sociedade brasileira aproxima História social da narrativa divisada em Populações, que também colocava a experiência urbana entre parênteses, a incrível inversão de sinais em relação ao livro de 1920 faz com que o “conservadorismo difícil” de Vianna, para recuperarmos os termos de Ricupero (2010), se apresente de outra forma nessas publicações póstumas. Muito da tensão da escritura de Populações se encontra ausente na produção do último Oliveira Vianna, pelo menos em três pontos fundamentais. Em primeiro lugar, a visão crítica do mundo rural, cuja expressão síntese era o termo “espírito de clã”, agora cede lugar ao “pré-capitalismo”. Uma vez que o seu contraponto, em História social, é o “supercapitalismo”, o “pré-capitalismo” é visto como inteiramente positivo, posto que antídoto ao “espírito de dominação, cupidez e violência” (Idem, 1987b: 197), que seriam intrínsecos ao “tipo psicológico” descrito por Sombart. Em segundo lugar, essa referência constante a Werner Sombart também é significativa da narrativa menos tensionada de História social, pois, ao contrário do que ocorre em Populações, os anglo-saxões deixam de servir como modelo de excelência societária. E, por fim, o Estado, embora importante no argumento de História social, deixa de figurar como principal promotor das mudanças sociais – aliás, elas são agora praticamente desnecessárias, já que o mundo rural brasileiro e suas formas de sociabilidade teriam prevenido a emergência de uma “revolução social”. Esse quase apagamento das tensões na escritura de História social é revelador, no fundo, do reforço do conservadorismo das produções tardias de Oliveira Vianna.
* * *
Neste sobrevoo, necessariamente seletivo, que fizemos até aqui, vimos que a reflexão de Oliveira Vianna, a despeito de continuadamente minimizar os impactos da experiência urbana emergente no Brasil, apresentou uma série de inflexões e ambiguidades ao longo de sua produção, gerando tensões mais ou menos agudas (no início mais fortes, depois mais brandas) no interior de suas formalizações intelectuais. O que procuramos sugerir neste trabalho é que uma forma possível de lidar com essas tensões é encará-las de um ponto de vista processual e dinâmico, quer dizer, apontando para as diferentes modulações que elas apresentam nos variados contextos de escrita e publicação dos trabalhos do autor. Até porque, ao assim procedermos, poderemos inclusive sugerir certas formas de mediação entre texto e contexto, já que parte das reviravoltas que identificamos nas reflexões de Vianna tem a ver, como buscamos demonstrar, com os limites (tais quais percebidos pelo autor) da ação do Estado pós-1930 no sentido da reversão do “espírito de clã” no Brasil.
Do ponto de vista de um intelectual profundamente cético quanto às instâncias propriamente societárias de transformação da sociedade brasileira – porque, no fundo, sempre desconfiado da capacidade de seus portadores sociais agirem autonomamente –, quando os limites de uma mudança feita por cima se revelam com alguma clareza, o seu potencial crítico igualmente sai de cena. Daí que, se em Populações encontramos uma argumentação bastante consistente quanto aos inúmeros problemas acarretados pela preponderância da grande propriedade fundiária no país, já em História social a defesa do latifúndio passa a figurar no centro de uma interpretação bastante conservadora. Não é o caso, porém, de opor um jovem Vianna progressista a um velho Vianna reacionário. Em nenhum momento o autor chegou a defender um programa vigoroso de transformação radical do mundo agrário brasileiro, mesmo reconhecendo que aí se encontrava o principal nó estrutural do “espírito de clã”. Insistimos aqui apenas no seguinte aspecto: se é possível enxergar um conservadorismo na produção de Vianna, ele não possui sempre o mesmo sentido, nem aponta necessariamente para as mesmas direções. Assim, contra as tentativas demasiado ordeiras de conferir um sentido unívoco ao conjunto de sua produção intelectual – dentre as quais se encontra a do próprio Vianna, que dizia, em várias oportunidades, surpreender-se com a sua “coerência e unidade de pensamento” (Idem, 1974: 19) –, propomos aqui uma visada mais aberta e contingente dos problemas que ele levantou.
Como assinalamos no início, recuperando uma observação de José Murilo de Carvalho, durante muito tempo a obra de Oliveira Vianna foi lançada aos infernos, justamente pela compreensão algo reducionista de que, ali, apenas encontraríamos justificativas ideológicas para o autoritarismo, o conservadorismo e o racismo persistentes na sociedade brasileira. Passados alguns anos de revisão interpretativa, pesquisas documentais e adensamento de sua fortuna crítica, novos protocolos de leitura vão se impondo, recolocando o autor na mesma prateleira dos principais intérpretes da sociedade brasileira. À primeira vista, portanto, parece bem-sucedido o esforço de sacar Oliveira Vianna dos infernos. O problema principal, no entanto, é outro. O inferno não ronda, ou rondava, apenas Oliveira Vianna. Ele ainda se encontra em nós mesmos. Afinal, a conexão histórica entre latifúndio, violência, arbítrio e “insolidariedade”, diagnosticada há quase cem anos em Populações meridionais do Brasil, teima em se repor, ainda que em outros termos e com outras facetas, na sociedade brasileira contemporânea. Nesse sentido, a sua atualidade se deve, por um lado, à acuidade analítica de autor – o que não é pouco, tendo em vista os recursos explicativos que tinha à sua disposição –; por outro, ao próprio sentido assumido pela mudança social no Brasil, com sua combinação estrutural de arcaísmo e modernidade.
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Autor do artigo:
Antônio Brasil Júnior
Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, (2004), fez o mestrado (2007) e o doutorado (2011) em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) daquela universidade. Professor adjunto do Departamento de Sociologia e Metodologia das Ciências Sociais Universidade Federal Fluminense desde 2013, publicou, entre outros, o livro Passagens para a teoria sociológica: Florestan Fernandes e Gino Germani (2013).