diante do corpo do velho amigo. Que ideias, que imagens, que recordações atravessaram naquele momento a mente poderosa do Conselheiro Rui Barbosa, diante do vulto inanimado do Conselheiro Rodrigues Alves? Teria lembrado seus despreocupados tempos de estudante, no longínquo São Paulo das rótulas, dos sinos e da garoa? Teria revisto os debates da Câmara do Império e da Constituinte republicana, os tumultos de Floriano, os governos de Prudente e Campos Sales, as transformações da cidade, os motins da vacina, o convívio no Senado, o cruzamento de ambos pela Europa nos tempos brilhantes de Haia, as aproximações e divergências recentes, os encontros e desencontros das suas vidas? Sem dúvida, o recolhimento de Rui era profundo, e sincero o seu sentimento. Ele provavelmente se via ali, deitado também em exposição pública, na mansão de São Clemente, mais dia menos dia. Que valiam, naquele momento, as lutas do passado, as incertezas do futuro? Ali estavam dois dos maiores homens da geração, o seu maior intelectual e o seu maior estadista. O outro morrera, ele continuava vivo. Vivo? Mas por quanto tempo? E, no fundo, vivo para quê? Se os outros, todos os outros, já haviam morrido? Se a lutas em que se haviam empenhado, um e outro, eram também lutas mortas, fossem coroadas pela vitória ou castigadas com a derrota? Surgia um mundo novo do sangue, da lama e da peste das longínquas trincheiras europeias. Um povo mal conhecido, a leste da Europa, parecia abrir as portas de uma nova era. Tempos temíveis, de ignotas doutrinas, diante das quais Rui devia pouco depois sentir-se como diante de um mar insondável.
A tardinha, depois da visita de Rui, o corpo desceu para a câmara ardente armada no salão Luís XV, aquele mesmo em que a bela Viscondessa de Cavalcânti, no tempo do Império, mostrava os braços roliços, os seios generosos, aos olhares indiscretos dos diplomatas estrangeiros.
Recebendo o morto as honras de chefe de Estado, a ornamentação fúnebre do salão era imponente. O catafalco erguia-se ao centro, cercado por dezoito enormes tocheiros. A parede do fundo estava coberta por uma cortina de veludo negro, onde ressaltavam, em ouro, as letras R.A. Os lustres, velados de crepe, esparziam uma penumbra discretamente luminosa. Na cabeceira do catafalco, um grande crucifixo de prata.
Era impossível fazer-se uma relação do imenso cortejo de pessoas que, durante toda a tarde, desfilou ante o corpo do