Uma comunidade rural do Brasil antigo. Aspectos da vida patriarcal no sertão da Bahia nos séculos XVIII e XIX

Essas "diligências" requeridas pelo Familiar, quanto à religião, costumes e limpeza de sangue dos ascendentes de Ana Francisca, foram muito comuns nos séculos passados. Com elas buscava-se provar ausência, na família, de judaísmo e outras heresias, de cumprimento de penas infamantes e outros castigos.

Aprovadas as diligências pelo Conselho Geral do Santo Ofício, ficou Ana Francisca "habilitada", apta para fruir, sem constrangimento algum, dos privilégios concedidos aos Familiares da Inquisição, bem entendido, daqueles privilégios que el-Rei D. Sebastião tornou extensivos à família dos beneficiários. Dentre estes, um havia que permitia o uso de roupas de seda, conforme constava na Carta de concessão: "Item me apraz que eles e suas mulheres, e assim seus filhos, e filhas, enquanto estiverem debaixo de seu poder, possam trazer em seus vestidos aquela seda, que por bem de minhas Ordenações, podem trazer as pessoas que têm cavalos, posto que os eles não tenham, sem embargo das ditas Ordenações".

Em Portugal, como nos demais países europeus, ao tempo dos barões feudais, era vedado, a quem não fosse nobre, ostentar indumentária confeccionada em tecido de seda e servir-se de cavalos para montaria. No reino luso, inseriu-se a proibição no próprio código ou "Ordenações do Reino". E derrogá-la em favor de alguém, significou conceder-se ao beneficiado prerrogativas inerentes aos nobres.

Se, graças à fortuna aqui acumulada, muita gente viveu no Brasil como os fidalgos viviam em Portugal, pelo menos, para tal, Miguel Lourenço e sua família possuíram autorização real...

Tranquilidade, dinheiro, cavalos, sedas, de tudo isso gozou o Familiar na sua fazenda do Campo Seco. Pequeno Torquemada frustrado, foi na fazenda que realizou os autos-de-fé, ateando fogueiras que abrasaram, não ressequidos e esmolambados corpos de sefardins, mas os verdes troncos e a ramaria das suas matas. Martelaram-lhe os ouvidos, no Campo Seco, não os golpes dos açoites nos cristãos-novos em tortura, mas o estalo seco dos machados que lenhavam e derrubavam, enquanto que pelas narinas a dentro lhe entrou o cheiro de suor e sangue, não o exalado dos cárceres inquisitoriais, mas cheiro de suor dos negros no eito e cheiro de sangue dos negros no tronco. Se devaneou alguma vez com autos-de-fé, outra não seria a quimera, outro não seria o sonho de Miguel Lourenço de Almeida, o Familiar do Santo Ofício que trocou a Inquisição pela colonização do Campo Seco.

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