Memórias da Rua do Ouvidor

que em vez de mandá-lo chamar a suas casas, como dantes, vinham barbear-se na dele.

Nos primeiros dias ufanou-se muito daquela alteração de costumes, atribuindo-a à honraria e consideração pessoal que lhe queriam prestar pelo crédito e pela estima que gozava.

Depois notou que os fidalgos que para barbear-se vinham à sua casa eram Gil Eanes, Lopo de Melo e mais quatro ou cinco, todos de nobres famílias mas também todos célebres na cidade por vida licenciosa e pervertida.

Tendo notado isso, desconfiou logo de fregueses tais, pôs-se de observação dissimulada e cuidadosa, e bem depressa certificou-se de que os seus fidalgos, quando chegavam para barbear-se, metiam os olhos pela porta do interior da casa, e que afora essa curiosidade impertinente, faziam ronda diária e suspeita pelo Desvio do Mar.

Aleixo Manuel não levou muito tempo a procurar a explicação do fenômeno; mas caiu das nuvens, lembrando-se de Inês.

A mameluca fulgurava então entre os 17 e os 18 anos de idade, e com seus belos olhos negros, sua boca lindíssima, seu rosto encantador, e seu corpo de contornos admiráveis, maravilhava pela formosura. Era uma arrebatadora morena esperta, faceira, e — sem o pensar, voluptuosa.

Aleixo Manuel caiu das nuvens, porque só então refletiu no que já sabia, só então reconheceu muito séria e gravemente que a menina sua escrava já era mulher.

Ele adorava Inês com enlevos e cultos de amor inocente e santo; até esse dia, porém, de queda do alto das nuvens ou se iludia nos segredos ainda não manifestos da natureza da sua afeição, ou deveras só amava Inês com o ardor e a pureza de pai estremecido.

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