Na madrugada seguinte, Bernardino era acordado pelo velho carreiro da fazenda: "Ioiô Bernardino, o coronel Otávio manda dizer que vosmicê é que vai tanger hoje os bois do carro." Alegre, contente da nova incumbência, o meninote foi, aos saltos, para a inesperada e gostosa faina. À frente dos bois, com a vara ao ombro, os pés descalços, cumpriu, feliz, as ordens do carreiro, que ia comodamente sentado na mesa do carro.
Todavia, a caminhada foi longa, tanto que, ao chegarem aos canaviais, já se manifestavam sinais de fadiga no pequeno trabalhador. Os picos de cana entravam-lhe pelos pés. O rosto já sofrera vários lanhos. Procurou defender-se, sentar-se no carro, mas as instruções dadas ao carreiro já previam tudo isso: "Coronel Otávio disse que Ioiô tem de fazer como os filhos dos carreiros do engenho." E não parava e não aliviava, em nada, os rigores do trabalho. O almoço foi na lata do carreiro: uns fios de carne-seca e um punhado de farinha grossa.
Bernardino só chegou a casa ao entardecer, e com os pés inchados, o rosto marcado, queimado de sol, cansado, derreado, num evidente contraste com a ingênua alegria com que partira pela manhã. Acresce que, ao despedir-se do carreiro, tivera a notícia de que no dia seguinte continuariam, no mesmo horário, nas mesmas condições. Apelou para que a bondade e doçura da mãe obtivessem dispensa de tão duras provas. A fadiga e os maus-tratos no filho provocam lágrimas da pobre mãe, que com elas procurou abrandar as ordens do marido, implorando fosse pelo menos suspensa a áspera tarefa. O coronel Otávio em nada alterou o seu plano. Bernardino teria de continuar a candear os bois, a não ser que resolvesse voltar ao internato.
Ciente da alternativa em que estava, o rapaz não vacilou. Voltaria para o colégio, ao fim das férias, contanto que não mais se repetisse a experiência do carro de bois.
O episódio gravou-se-lhe na memória, e, ao narrá-lo, tantos anos depois, era de vê-lo com os olhos rasos d'água, evocando a rígida inteireza do pai, os afagos compensadores da mãe, a fidelidade do carreiro, compenetrado de estar, também ele, dando ensino ao senhor moço.
As emoções daquele dia — alegres no começo, sombrias no meio, dramáticas no fim da jornada — fixadas numa saudade imorredoura, constituíram germe do estudo de profundidade a que se atirou o menino do engenho "Murta", meio século depois.
Foi com um sentimento de alegria pelo reencontro com as coisas de seu passado que Bernardino de Souza planejou e executou a pesquisa sobre o carro de bois. As primeiras cartas, contendo interrogações, eram endereçadas aos íntimos, à gente nunca esquecida da "Murta", do "Rio Azul", das vilas e cidades próximas: de Itapicuru, de Esplanada, do Rio Real. As respostas iam sugerindo novas perguntas. A correspondência foi crescendo, incluindo amigos e conhecidos