Entre o espírito ordeiro, pacato, timorato, do funcionário da Secretaria da Agricultura, do mestre do cenáculo conservador da Garnier, do Presidente da Academia de Letras, do pessimista reticente, do cidadão absenteísta, do marido exemplar, e a crueldade às vezes sádica do dissecador de almas, e a volúpia mal contida do criador de paixões, e o negativismo quase irritado do romancista interrogando avidamente a vida sem nunca encontrar uma resposta, vai um abismo.
Um abismo que a existência do nevropata em Machado de Assis explica apenas em parte. Não, ele não foi apenas o que deixou ver. Se o tivesse sido, não valeria a pena estudar-lhe a vida. E, se o tivesse sido, a sua obra não poderia ter existido.
Onde, nessa figura convencional, nesse retrato próprio para inaugurações oficiais, o lugar do artista — essa incógnita, esse elemento inquietante e imprevisível?
Um espírito banal — e são de uma banalidade desoladora as atitudes mais conhecidas do grande escritor, e até a sua correspondência — não poderia ter criado a Capitu, ou o Brás Cubas.
Esse homem tão recatado, tão cioso da sua intimidade, só teve um descuido, só deixou uma porta aberta: os seus livros. São eles que nos revelam o verdadeiro Machado. Vingança suprema do artista, tanto tempo encoberto pelo funcionário. Vingança ou generosidade? Conservando, nas entrelinhas,