"Eu criei-me na largueza — dizia ele a Coelho Neto(15). Nota do Autor
correndo campinas, varando cerrados, comendo o que me ofereciam as árvores, bebendo nas fontes vivas, e, quando o calor abafava, despia-me, pendurava a roupa num galho e atirava-me n'água, nadando contra a corrente... Mas o meu maior encanto era, à noite, no copiar ou na eira, entre crianças, ouvir as velhinhas, que, com a almofada ao colo, urdindo o crivo, contavam xácaras peninsulares, narravam conselhos, ou espavoriam o auditório ingênuo com histórias sombrias em que o saci saltava num pé só, alumiando a brenha com o olhar esbraseado, quando não era o caapora, senhor da mata, que rompia das profundezas com estardalhaço de ramos, montando num caititu monstruoso que afocinhava as sapopemas, grunhindo e estralando os colmilhos. E fábulas e lendas, umas irradiando com o aparecimento de Rudá, o sol, outras melodiosas do canto múrmuro das iaras, ou, então, os cantos que faziam rir os pequeninos com as astúcias do jaboti, as manhas do macaco e as palermices da onça, sempre ludibriada pela esperteza dos animais matreiros. Ah! meu amigo, nunca livro algum, por mais notável que fosse o seu autor e celebrada a sua fábula, conseguiu atrair-me como aquelas velhas o faziam com o imã dos seus racontos. Às primeiras palavras que caiam lentas no silêncio atento — "Era uma vez..." o coração batia-me comovido, um calor inflamava-me muito os olhos e eu via, via os caminhos do encanto, as árvores de folhas de ouro, as grutas de esmeraldas, os dragões que bufavam chamas, as serpentes, os cisnes, que eram príncipes encantados, as princesas cativas de mouros, todas as coisas e figuras desses poemas da infância, primeiros alimentos da imaginação... E quando toda a casa dormia, e, lá fora, no silêncio da noite escura, as corujas chirriavam, quanta vez cobri a cabeça com o lençol e