INTRODUÇÃO
O BONECO TEM UMA VIDA. É uma transferência na infância e uma fixação na idade madura. A boneca de pano pode ser tudo: desde a filha à mãe, desde a comadre à irmã, amiga ou inimiga. O boneco é um ser misterioso, feito, às vezes, à nossa imagem e semelhança, mas de qualquer modo um ente à parte em torno do qual podemos construir um mundo. É também um ser arbitrário e poético. Isto o simples boneco mudo, manejável de acordo com as nossas forças. O boneco visto no espetáculo transforma-se de ser passivo, dependente, obediente às nossas mãos, numa criatura de vida própria e atuante, porque, em nossa condição de espectadores, colocamo-nos em face do inesperado. Toda arte é uma surpresa.
Sempre detestei os bonecos disciplinados dos Podreca; por exemplo, as marionetes de fio que tentavam imitar o ator de carne e osso, uma contrafação, portanto, do homem. Em troca, os bonecos de luva - arbitrários, antirrealistas, poéticos - deleitavam-me. Cheiroso, o velho titeriteiro pernambucano, pernóstico, analfabeto, inconsciente, praticou um mamulengo de exatas medidas populares, continuando uma corrente que se estende do Egito antigo ao babau de Manuel Amendoim de Goiana. Com Cheiroso entramos no mundo da marionete popular, selvagem, pura, angélica. Dele partiu a descoberta de um mundo que só me aventurei a explorar agora, nessa pesquisa mais poética do que erudita, graças à possibilidade