se compram e vendem, não dos naturais, senão dos trazidos de outras partes: mas que Teologia há, ou pode haver, que justifique a desumanidade e sevícia dos exorbitantes castigos com que os mesmos escravos são maltratados? Maltratados disse, mas é muito curta esta palavra para a significação do que encerra ou encobre. Tiranizados devera dizer, ou martirizados. Porque serem os miseráveis pingados, lacrados, retalhados, salmoirados, e os outros excessos maiores, que calo, mais merecem nome de martírios que de castigos. Pois estais certos que vos não deveis temer menos da injustiça destas opressões, que dos mesmos cativeiros quando são injustos: antes vos digo que muito mais vos deveis temer delas, porque é muito mais o que Deus as sente. Estão açoitando cruelmente o miserável escravo, e ele gritando, a cada açoite, Jesus Maria; Jesus Maria, sem bastar a reverência destes dois nomes para moverem à piedade um homem que se chama cristão! E como queres que te ouçam na hora da morte estes dois nomes quando chamares por eles? Mas estes clamores, que vós não ouvis, sabei que Deus os ouve; e, já que não têm valia para com o vosso coração, a terão sem dúvida, sem remédio, para vosso castigo".(189) Nota do Autor
Pairava, assim, nestas alturas, e se procurava manter, o ambiente de consideração pelos escravos, e de reação cristã contra os maus tratos, de que eram vítimas, e não apenas no Brasil, porque era fruta do tempo. Neste ambiente se enquadra o livro de Jorge Benci, como tentativa didática, não já dirigida aos escravos, mas aos senhores. Jorge Benci, leitor dos sermões de Vieira, e seu companheiro algum tempo na Bahia, pregara, à imitação do grande português, um sermão também sobre as "Obrigações dos Senhores para com os Escravos". Dada a fama e lustre de Vieira, não era fácil a quem quer imprimir sermões sobre temas desta natureza. Benci modificou o texto e fez um breve tratado, dividido em quatro partes ou discursos, e intitulou-o Economia Cristã dos Senhores no Governo dos Escravos. E com ele se situa, na literatura sobre a escravidão no Brasil, entre Vieira (1686-1688) e Antonil (1711).