O devassamento do Piauí

as posições de influência. Dessa maneira, aliás, é que a enfiteuse invadiu o Brasil, não pela facilidade ou benefício do regime, mas pela impossibilidade, que impedia o povoador de obter a carta de doação da terra que era sua, por direito de conquista, pelo trabalho realizado, pelos sofrimentos suportados. Sob esse aspecto, a enfiteuse foi apenas um regime de exploração do povoador efetivo pelos potentados das cidades do litoral.

Como não bastasse essa espoliação, ainda o destino lhe reservaria outro esbulho, a esse humilde e obscuro povoador. O trabalho quase sempre é dele; a glória, porém, não lhe pertence. Historiadores e cronistas, fantasistas e escritores não se cansam de fazer a exaltação dos potentados. Parece até que é privilégio da posteridade a multiplicação dos cortesãos, no louvor dos poderosos. Não se cansam os turíbulos de queimar o incenso das palavras bonitas e dos elogios fartos, esquecendo o drama real da conquista, aquele que se processou à margem dessa exaltação, no pleito desesperado do povoador contra os sesmeiros parasitas, que lhes extorquia, no foro anual, parte considerável dos frutos obtidos nos trabalhos e sacrifícios quotidianos. Deixa-se de lado o esforço decisivo dos que, na realidade, povoaram os sertões, juntando os primeiros rebanhos e fundando as primeiras searas, aquelas que floresceram no mistério de paragens, que o gentio de corso ainda frequentava, com as suas correrias e depredações.

Já não é sem tempo que se comece a escrever essa outra história, talvez sem lentejoulas e sem babados, sem casacas de seda e sem chapéus de bico, mas história muito mais humana, muito mais exata, muito mais brasileira. História que esquece os salões de dança, os solares suntuosos, para se deter na casinhola coberta de pindoba, descrevendo o heroísmo simples do homem que, de perto,

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