I
DECADÊNCIA
D. João VI foi o rei que nunca amou. Parece que D. João V, magnífico e pródigo, esgotara as reservas sentimentais da dinastia. Já D. José fora um tímido, governando, namorando, vivendo; e sua filha a rainha D. Maria I, de pesado penteado francês e o longo pescoço alvo embrulhado em colares, dera à igreja as demasias do seu temperamento veemente. De um casamento melancólico de sobrinha e tio - um tio manso, lerdo e suave, D. Pedro III - nascera, com o destino antecipado na máscara, o príncipe do Brasil que veio a ser o seu primeiro rei. Propenso a engordar como o pai - tirando ao avô na nostalgia e quietude, sem a imaginação nem a vitalidade de D. Pedro II, seu trisavô, o penúltimo forte da família - se não lhe morresse o irmão mais velho, herdeiro da coroa, vegetaria por toda a existência, meio frade cantor, meio filósofo, a esburgar ossos de frangos pelos imensos corredores de Mafra. Era feio, lento de movimentos, ventrudo, prognata, misógino, incapaz de vontade constante, piedoso e glutão. Não lhe faltava, porém, discernimento. Tinha pronta e lúcida a inteligência inculta, maliciosa, apurada pela observação solitária, que é o sexto sentido dos misantropos. Não nascera