à esfera mística. Esses apóstolos eram conquistadores desarmados e também, como Nóbrega, estadistas sem alvará régio. Servido pelos arroubos de uma alma poética, e posto em contato com aquela humanidade bárbara, o misticismo de Anchieta fez dele uma espécie de Orfeu cristão, encantador e domador de feras. Com ele o mito órfico se renova, e o que perde em helênica beleza plástica, ganha em formosura espiritual.
O pálido, o doentio, o corcovado evangelizador, desembarcado com seus companheiros de catequese da flotilha do governador D. Duarte da Costa, ia desempenhar uma missão de predestinado, em confronto da qual empalidecem as proezas de muitos heróis.
O descrever essa vida beata quase importa em descrever a infância de uma nação: infância trágica e truculenta, de que alguns historiadores destituídos de visão não perscrutaram os apocalípticos aspectos. Essa infância acaba, finalmente, de ser narrada com sublime eloquência por um dos mais admiráveis ourives da nossa língua. A biografia de Anchieta, composta por Celso Vieira, é, antes de tudo, uma poderosa obra de historiador dramaturgo, decerto a mais opulenta de linguagem que até nossos dias se incorpora na História nacional, porquanto nem as figuras máximas de Varnhagen e Capistrano possuíram o condão, reservado aos artistas, de transfigurar o verbo em beleza.
Até hoje, a bibliografia anchietana era principalmente constituída com panegíricos exalçadores da vida sublime do taumaturgo. Um historiador, no sentido objetivo e erudito da palavra, não ensaiara ainda reconstituir em seu realístico cenário histórico a existência de Anchieta e determinar a influência que ele tivera, como artífice, na embriologia da nação, nem tão pouco fixar-lhe a posição culminante no nosso patrimônio espiritual.