Cartas ao irmão

parecer uma ironia ou uma ingenuidade, como a de Sêneca, escrevendo para Nero o tratado De Clententia." E conclui melancolicamente que dia virá, talvez, em que os povos, grandes e pequenos, compreendam que o respeito ao Direito não é só um, dever senão também a condição necessária para a paz. "Estará longe esse dia? Ele virá certamente, embora, talvez, a distância que o separa de nós só possa ser medida pelos algarismos da cronologia geológica."

No refúgio solitário da meditação e do estudo, na sua chácara da Gávea, entre o mar e a montanha, à sombra das suas árvores queridas, ouvindo o sussurro da corrente que derivava a poucos passos da sua biblioteca, viveu Lafayette os seus derradeiros dias. A sua livraria ficava em um pavilhão separado da casa de morada e para lá se dirigia, calçado de botas de cano, quando havia lama no jardim. Foi a leitura a única distração da sua velhice, e Montaigne, engenheiro-irmão do seu último companheiro do seu espírito, que o deleitava com as confidências de moralista desencantado, de cético enternecido e sorridente, nesse livro imortal dos Ensaios, breviário da sabedoria antiga, em que se mostra o grande pensador "sans étude et artifice", "tel sur le papier qu'à Ia bouche".

Seria preciso ver Lafayette na intimidade do seu lar, desprendido de ambições e vaidades mundanas, simples, modesto, recolhido, sorvendo os seus intermináveis cigarros de fumo de rolo e marcando as suas leituras interrompidas com fragmentos de palha de milho, declamando versos de Virgílio à esposa e aos filhos, e subindo todas as manhãs ao alto da montanha para saudar o sol e contemplar longamente o mistério infinito do oceano, para avaliar a injustiça e a dureza dos que proclamaram a suposta malignidade do seu caráter. Chamaram-lhe "animal de sangue frio", a ele, que tinha a mais delicada sensibilidade! L'humanité est comme une mêlée de masques — escreveu Jules Lemaître. A frieza da máscara de Lafayette ocultava aos outros os tesouros da sua alma peregrina. Quando o injuriavam na imprensa, taxando-o de perverso e mau, sua esposa, revoltada, pedia-lhe que se defendesse. E Lafayette, com um encolher de ombros: "Ninguém me conhece!"

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