e de tal maneira se comediu na temperança dos ares, que nunca nela se sente frio nem quentura excessiva."(23) Nota do Autor É como se ouvíssemos um eco, e bem nítido, do velho motivo edênico de Isidoro de Sevilha, na versão medieval portuguesa do Orto do Esposo: "nõ ha frio nem quentura, mas ha hy sempre temperança do aar."
A estrita obediência, neste ponto, a um esquema fixo e tradicional, não impede Gandavo de mostrar-se, muitas vezes, observador imparcial e clarividente. Em escritos como os seus, que já puderam ser considerados uma espécie de "propaganda de imigração", não falta mesmo algum dado mais próprio para afugentar do que atrair forasteiros, como o que trata de um "vento da terra", sumamente perigoso e doentio, que "se acerta ficar alguns dias, morre muita gente, assim portugueses como índios",(24) Nota do Autor e isso justamente na página onde se gaba a insigne bondade de uma região onde os velhos ganham vida longa e como que renovada.
Se é exato que ele se mostra por vezes fiel ao velho esquema das visões edênicas, a sua não deixa de ser, ainda assim, uma visão até certo ponto corrigida e muitas vezes atenuada até aos limites do plausível. Nisto inscreve-se Gandavo numa tendência geral entre os cronistas e viajantes portugueses que descreveram o Brasil quinhentista. Se entre estes existe de fato algum pendor para ver concretizadas nas terras descobertas, sobretudo na Terra de Santa Cruz, as imagens sugeridas pela nostalgia do Paraíso, pode dizer-se que apenas a firme crença no bom temperamento dos ares que nelas se respiram, segundo testemunho de tantos viajantes, ares que, preservando os moradores de quaisquer enfermidades, os asseguram também contra a morte prematura, chegara a alcançar duradouro crédito.
É de notar que não entrava nisto qualquer sugestão de mistério ou magia, e mesmo os que se tinham por adversos àquilo a que chamavam lendas, abusões e ignorâncias dos antigos, admiravam por vezes sem reservas a pretensa imunidade a todas as doenças de que desfrutariam os moradores do Brasil. Um desses autores, Frei Amador Arrais, que inclui entre as façanhas mais memoráveis de seus conterrâneos o terem desterrado fábulas tão pertinazes como a dos diamantes, que podem ser amolecidos com ajuda do sangue de bode, ou ainda como a do ímã, a "pedra de cevar" segundo então se dizia, que deixava de atrair o ferro na presença do mesmo diamante, conservará ainda no texto revisto para a edição de 1604 do diálogo da "glória e triunfo dos Lusitanos",