Gente sem raça

Na verdade, um povo que encetou conosco sua vida soberana; que passou pelas mesmas contingências que nós, que, como nós, teve em sua formação o negro e o índio, levar-nos uma dianteira de dois séculos?...

Daí a aceitar o critério das diferenças raciais para explicar o contraste, ia um nada. Salvou-me da conclusão o sentimento de decoro humano. Se o amor próprio — não era outra cousa — amparou-me o sentimento, impedindo que se rendesse, sem condições, à conclusão inevitável — perdurou o conflito íntimo entre a convicção e a emoção. Compenetrado das falsas razões de minha fé, esforçava-me por manter atitude que não traísse o complexo de inferioridade de que era presa. Daí minha exagerada suscetibilidade e a intolerância com que recebia críticas às nossas cousas, inda que justas e de boa fé, principalmente quando tinha um estrangeiro por interlocutor.

Para recuperar minha tranquilidade, de duas uma: capitular ao reconhecimento de nossas inferioridades irremediáveis e curvar-me ao inevitável; ou enfrentar as increpações com a decisão intrépida de dar-lhes explicação compatível com nossa dignidade de povo.

Minha vocação patriótica impeliu-me, sem vacilações, para o segundo alvitre. O que muita gente aceita ainda hoje, com humilde resignação, soou sempre a meu sentimento de brasileiro como abjeção infamante. Sempre me repugnou admitir superioridades humanas em massa. Para onde quer que me voltasse, via de tudo: homens nobres e vis; fortes e débeis; inteligentes e estúpidos, como produtos humanos de seres que se acasalam. As diferenças que distinguia eram pessoais e adstritas às condições herdadas e ao meio. Sei que a indústria conseguiu fazer automóveis, aviões, navios, em séries, mas não me consta que o sistema haja sido estendido

Gente sem raça - Página 11 - Thumb Visualização
Formato
Texto
Marcadores da Obra