também temos filhos e parentes, e os amamos tanto quanto vós, mas, como temos certeza que depois de falecermos a terra, que nos forneceu o essencial para a vida, os alimentará também, ficamos perfeitamente descansados, sem a menor preocupação". Continuemos, deixando de lado, em todas as suas versões, a lenda de Santo Tomé. Convenhamos, porém, que isso — a opinião do índio — é puramente evangélico; é o evangélico "sufficit diei malitia sua", que talvez houvesse tornado a humanidade mais feliz, pois nada a faz mais miserável do que o espírito contrário, o da "auri sacra fames".
Os europeus encontraram aqui uma população agrícola, "fisicamente forte, curada pelas intempéries, astuta em sua prática cinegética, cruel, dissimulada, sem noção de responsabilidade individual, e lançando sobre a coletividade adversa o peso da vingança de qualquer falta ou crime de qualquer de seus membros. Obedecia a seus chefes, caciques ou morubixabas, a seus curandeiros ou feiticeiros, pajés, e era fácil e simples no trato". Um pouco inferior e um pouco superior aos descobridores. Como afirma Calógeras, essa população permaneceu fiel a atividade agrícola até o fim do século XVII. Quantos mil índios? Uns 800 mil, dos quais em 50 anos os europeus escravizaram cerca de 18 mil, isto é, um pouco mais do que os negros trazidos da África e pouco mais da metade dos brancos vindos da Europa. Estes não eram só portugueses, porquanto o milhão e tantos de habitantes de Portugal apenas lhe forneciam trabalhadores para as Índias. Permitiu-se a entrada de imigrantes de todos os países católicos. Apesar dessa restrição religiosa, foi grande o contingente de costumes dissolutos comboiados pelos imigrantes. Já no século seguinte ao descobrimento vai alguém dizer, na Europa, que, "além do Equador, não existe pecado", porque a linha que divide o globo em dois hemisférios estabelece também o limite entre a virtude e o vício.(1) Nota do Autor
Todavia, o cronista de Cabral pudera escrever a seu rei, que "ha inocencia desta jemte hee tal, que ha de Adam non seria mais quanta em vergonha"; e, depois do famigerado "darsehaa neela tudo", referente à terra, opinava que "ho milhor fruyto, que neela se pode fazer, me parece que será salvar esta jemte, e esta deve ser a principal semente, que V. A. em ela deve lançar". De resto, seria ingênuo admitir inocência em povos não selvagens, mas asselvajados, e que naturalmente haviam conduzido da civilização, de onde se destacaram, aquelas aberrações neles encontradas pelos mais austeros excursionistas, como Saint-Hilaire, inclusive alguns chamados "vícios modernos". Mais certo andará Martius, dizendo que o aborígine brasileiro estava fora do período da inocência. Isso não o compromete, ao aborígine, nem redime o europeu; Martius exprime com felicidade a situação verdadeira: "Cada dia de convivência com os silvícolas firmou mais em mim a convicção de que esta gente deve ter sido bem diferente em tempos passados e que