Quantos segredos, quantos dramas, amor e sofrimentos não se escondiam nelas? Saboreei a expectativa de as desbravar e comecei a trabalhá-las, muito devagarinho. Aos poucos, foram-me absorvendo, embebi-me nelas até já não ser necessário fazer qualquer esforço para resistir ao apelo estonteante da praia que, cada manhã, entra de roldão pelas casas cariocas! Ao longo de um ano, familiarizei-me com as peculiaridades das caligrafias dos diversos personagens. À medida que as transcrevia, aqueles nomes que até agora eram, em alguns casos, etiquetas vazias em registros genealógicos e, em outros, epígrafe de áridas biografias históricas ganharam conteúdo humano e dramática dimensão de angústias, afetos, qualidades ou vícios de personalidade. O caráter de cada um foi ficando mais nítido, acontecimentos foram-se entrelaçando, até formar a malha de um quadro colorido e real de vida e sofrimento. Surgia a projeção do pensamento e da filosofia de um agitado período histórico, de seres humanos que se formaram entre fenômenos tão díspares, como os europeus e racionais acontecimentos da revolução francesa, com consequente intervenção napoleônica em Portugal, e as tropicais e apaixonadas circunstâncias que rodearam a Independência do Brasil. Profunda revolução de mentalidades, violento desafio, que a todos envolveu e a cada um obrigou a dolorosas opções de consciência, que penetraram até a gama dos afetos familiares. Esses personagens tornaram-se tão vivos que, em certo momento, comecei a ter a sensação de que se haviam vindo sentar em semicírculo, em torno da secretária da minha sala de trabalho. Maria-Bárbara-de-retrato-perdido, que, em 1829, cantando ao piano num engenho do Recôncavo, fez ao viajante italiano Patroni(4) Nota do Autor "a mesma impressão que Vênus fizera no pai dos deuses, quando as lácteas tetas lhe tremiam no concílio celeste, congregado para decidir da sorte dos lusitanos nos mares da India", desenhava-se-me uma beleza rubeniana, opulenta, vigorosa e ruiva. O estilo das suas cartas numerosas surpreende, antes de mais nada, pela cultura e pela facilidade e originalidade de expressão numa mulher nascida em Penafiel, na segunda metade do século XVIII, e numa família da aristocracia rural, normalmente ignorante, sobretudo no que se referia ao setor feminino. Este fato, contudo, lembra-me que foi nessa classe, entre a toga e o brasão, que se recrutaram os progressistas, permeados dos ideais neorrevolucionários que constituíram os contingentes da liderança liberal, que viria a substituir a então já decadente e obscurantista nobreza da capital. Maria Bárbara cita Camões, reproduz máximas