Cartas Baianas: 1821 - 1824. Subsídios para o estudo dos problemas da opção na Independência brasileira

do idílio final numa quinta do norte, numa paz que as suas ambições e o conturbado período histórico que lhes calhara nunca lhes havia concedido em anos de vida em comum. Grande e ruiva, envolvida num largo capote negro, Maria Bárbara seria uma estátua de paixão contida. As suas palavras eram tão intensas que doíam ainda mais, sem que nunca chegassem à fraqueza. Cheia de força e dó, seria com recomendações sobre pormenores banais que abandonaria o barco, sempre insistindo nas responsabilidades que a obrigavam a continuar por mais uns tempos a frente do engenho, à cabeça da família. Corajosamente a enganar e a enganar-se. Em terra quebra, corre a casa e escreve para o Rio: "Meu adoradíssimo Luís: Cheia de saudades, sufocada em pranto, te envio estas linhas para certificar-te de que vivo. E, portanto, em pouco irei para o engenho, cuidar ali da nossa casa".

E Rodrigo? Terá tido coragem de enfrentar as críticas dos seus partidários e de se avistar com o sogro a bordo? Maria Sabina sabemos nós pelas cartas não ter tido tempo de descer do engenho Novo, lá para as bandas da Cachoeira. Para sempre deve ter guardado a amarga frustração de não ter visto o pai pela última vez. Mimi, essa corria inconsciente sobre as tábuas patinadas pela maresia dos esconsos escuros do brigue, enquanto os mais velhos provavam o fel de dizer um mundo de coisas, num momento curto, que poderia ser e era o derradeiro. Luís Paulino cumpria o seu destino de herói romântico, acabava-se devorado pela tísica. É bem possível que ataques violentos de tosse tenham manchado de sangue estas horas sombrias, deixando mulher e filhos a vibrarem, por momentos, como sinos de inquietação.

Este encontro de família, na fronteira com a morte, encerrava o ciclo Portugal-Brasil, em que a família circulara entre dois mundos, como sangue nas veias do mesmo corpo. Daí em diante, seria o rápido levantar das tendas e os caminhos separados. Um grupo, esbatido pelo nevoeiro, acenou longa e desesperadamente de um escaler que reconduzia à terra gente carregada de angústia, indiferente ao mar violento. Na amurada, Luís Paulino, rosto severo virado a chuva, alinharia já talvez a última estrofe do soneto que poucos meses depois rabiscaria em pleno oceano, horas antes de morrer:

Eis já dos mausoléus silêncio horrendo, / Me impede o respirar, a voz me esfria. / Eis chega a morte eterna, eis morre o dia, / Ao nada a natureza vai descendo.

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