Não só aos negros de pé no chão - grandes pés, chatos e esparramados, alguns de dedos torados pelo ainhum, outros roídos de aristim ou inchados de bicho - como aos próprios caixeiros de chinelo de tapete e cabelo cortado à escovinha e até aos portugas gordos de tamancos e cara rapada estavam fechados aqueles jardins e passeios públicos, aquelas calçadas de ruas nobres, por onde os homens de posição, senhores de barba fechada ou de suíças, de botinas de bico fino, de cartola, de gravata, ostentavam todas essas insígnias de raça superior, de classe dominadora, de sexo privilegiado, à sombra de chapéus de sol quase de reis. Chapéus de sol de seda preta e cabo de ouro. Às vezes de pano de cor, o cabo formando cabeças de bicho, os grandes bichos quase simbólicos do domínio patriarcal no Brasil, os mesmos dos umbrais dos portões das casas: leões, gatos, cachorros, papagaios.
Aqueles momentos de confraternização entre os extremos sociais, a que nos referimos - a procissão, a festa de igreja, o entrudo - é que foram fazendo das ruas e praças mais largas - da rua em geral - zonas de confraternização. Marcaram um prestígio novo no nosso sistema de relações sociais: o prestígio da rua.
A partir dos princípios do século XIX, a rua foi deixando de ser o escoadouro das águas servidas dos sobrados, por onde o pé bem calçado do burguês tinha de andar com jeito senão se emporcalhava todo, para ganhar em dignidade e em importância social. De noite, foi deixando de ser o corredor escuro que os particulares atravessavam com um escravo na frente, de lanterna na mão, para ir se iluminando a lampião de azeite de peixe suspenso por correntes de postes altos e tristonhos. Os princípios de iluminação pública. Os primeiros brilhos de dignidade da rua, outrora tão subalterna que era preciso que a luz das casas particulares e dos nichos dos santos