O rei filósofo: vida de D. Pedro II

a extrema unção. De novo se lhe embaciaram as pupilas azuis: meia hora depois, começou a morrer.

Nem mais uma palavra se ouviu. Estranhas paisagens inundam d'uma luz misteriosa e suave as fixas-pupilas dos agonizantes. Nascera, criara-se, envelhecera em S. Cristóvão; talvez lhe ouvisse ainda, suspensos no gemido do vento, os ruídos de suas árvores, a indistinta zoada da mata que tanto medo lhe causara na infância. E pela memória que se apagava passassem as sombras veneráveis, familiares, graves, de sua saudade: a Dadama com as vestes negras, Aureliano, Paulo Barbosa, o majestoso Paraná, a velhice risonha de Sapucahí, o honesto Bom Retiro, Caxias com os seus bordados, Tamandaré resmungão e rude, a elegância de Rio Branco, a manhosa serenidade de Saraiva, Dantas, Ouro Preto, Paranaguá, o marechal Deodoro, a queixa áspera de Benjamin Constant, acusando-o de abandonar os intelectuais, os pobres da mordomia, em torno de Nogueira da Gama, bendizendo-o de longe, e entre essa gente desfilando, fardas, oiros, esplendor, a boa senhora que se aproximava, coxeando, minúscula, de lindos olhos negros, toda vida calada, por seu amor, a Imperatriz...

Soou meia-noite. Era 5 de dezembro de 1891. O coração batia ainda, enfraquecendo, esgotando-se, perecendo... Meia hora mais tarde, a princesa, de joelhos, beijava a mão enregelada do Imperador, e choravam todos, sem ruído, abafando nos lenços um pranto irreprimível. O grande corpo enchia a cama pobre; pousava-lhe sobre o busto um crucifixo; e a bela cabeça encanecida, de perfil aguçado pela morte, como modelada em cera, conservava a majestade e a altivez da realeza.

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