Uma comunidade rural do Brasil antigo. Aspectos da vida patriarcal no sertão da Bahia nos séculos XVIII e XIX

do "tribunal dos ausentes", na Vila da Barra - a entrega de 88 éguas a um criador, "nesta Fazenda do Campo Seco". Na mesma data, registrou a presença, em suas pastagens, de animais pertencentes a outrem e a ele confiados para criação. Tem-se assim a certeza de que a partir de 1755, pelo menos, o Familiar já possuía a fazenda e lá residia. Daí para a frente, não mais deixou o sertão, a não ser, talvez, para esporádicas viagens ao Salvador ou a povoações e fazendas vizinhas. Ligou-se o português às suas terras de tal forma, que delas se recusou a sair até mesmo para o exercício temporário de "empregos" ou cargos, a que estavam obrigados os indivíduos de posição e haveres.

Servir à administração de suas vilas, nos tempos coloniais, era obrigação implícita de todos os moradores, sendo, via de regra, escolhidos os melhores e mais capazes, os chamados "homens bons" da "república", segundo os antigos dizeres. Ora, por incrível que pareça, muitas vezes importava em verdadeiro sacrifício o desempenho de cargos eletivos e administrativos, principalmente para aqueles que residiam em suas fazendas, a dezenas de léguas da sede da vila. Assim sendo, não foram infrequentes as escusas, geralmente não acolhidas pelas autoridades, que, detentoras do poder, acabavam compelindo o "homem bom" ao exercício do mandato. Era, de fato, tão real o sacrifício, que el-Rei concedia a muitos de seus súditos, por este ou aquele motivo, o privilégio de poder recusar o desempenho de certos cargos públicos.

Pois o fazendeiro do Campo Seco se negou a aceitar um "ofício do Conselho", na vila do Rio de Contas. Os camaristas insistiram, mas sem resultado. Apelaram então para o Ouvidor da comarca, que era, na ocasião, a de Jacobina. E o fazendeiro persistiu na negativa, baseado numa antiga carta de Privilégios, concedida pelo rei D. Sebastião, uns duzentos anos atrás, aos "oficiais e familiares" da Inquisição. Justamente um dos privilégios consistia em não servir, contra a vontade, em ofícios do Conselho: "nem hajão officios do Cõcelho cõtra suas vontades". Tanto o Ouvidor - que não era o efetivo, mas algum letrado exercendo interinamente o cargo - como os camaristas, não quiseram aceitar a recusa, apesar de o fazendeiro exibir-lhes o documento dos privilégios, um folheto impresso, no qual sublinhou, à tinta, o item que lhe interessava, conforme se pode ver no original que se conservou, intacto e perfeito, no arquivo da família. Recorreu, então, Miguel Lourenço à Junta que na ocasião dirigia o governo-geral do Brasil, no Salvador. Historiou os fatos e anexou à petição o seu diploma ou Carta de Familiar do Santo Ofício, documento que posteriormente lhe foi devolvido, pois que também se guardou entre a papelada do Sobrado do Brejo, juntamente com uma cópia do requerimento, de seu próprio punho.

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