Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio

do desdém. Na estrutura dualista, a ponte - a artificial estilização - não solda as categorias que, apesar de acomodadas, resistem aos símbolos comuns de integração.

Ninguém se engane com o painel aparente da sociedade na obra de Machado de Assis. Enchem a vista do leitor desprevenido as figuras dominantes, barões, conselheiros, comendadores e patentes da Guarda Nacional. Ministros, regentes, barões perpassam na superfície, sobretudo os ministros, alvo de ambições caladas e de ambições descobertas. Em nível próximo, vêm os banqueiros, capitalistas, fazendeiros e comerciantes. Todos, barões e capitalistas, conselheiros e banqueiros, comendadores e comerciantes, coronéis e fazendeiros - todos estão, para quem olha de longe, no ápice da pirâmide, confundidos e misturados, como se fossem membros de uma só confraria.

Nitidamente, há uma estrutura de classes - banqueiros, comerciantes e fazendeiros - sobre butra estrutura de titulares, encobrindo-a e esfumando-lhe os contornos. É a camada da penumbra que decide os destinos políticos, designa deputados e distribui empregos públicos. São as "influências", os homens que mandam, que se entendem com os executores e dirigentes das decisões do Estado. Duas faixas se separam, com clareza, no conteúdo e no conceito, na ação social, não raro entrecruzando-se e se confundindo. Para simplificar e com antecipação: a classe em ascensão coexiste com o estamento; muitas vezes, a classe perde sua autonomia e desvia-se de seu destino para mergulhar no estamento político, que orienta e comanda o Segundo Reinado.

Há uma sociedade de classe em plena expansão, cifrada, nas expressões mais gloriosas, nos banqueiros, nos prósperos comerciantes, nos capitalistas donos de rendas, nos senhores de terras e nos escravos. O dinheiro é a chave e o deus desse mundo, dinheiro que mede todas as coisas e avalia todos os homens. Falcão, personagem de um conto publicado em 1883 (A anedota pecuniária, II, 422), ao relatar o enterro de um amigo, para referir o esplendor do préstito de 1864, não achou melhor expressão do que dizer: "Pegavam no caixão três mil contos!" "E como um dos ouvintes não o entendesse logo, concluiu do espanto, que duvidava dele, e discriminou a afirmação: - "Fulano quatrocentos, Sicrano seiscentos... Sim, senhor, seiscentos; há dois anos, quando desfez a sociedade com o sogro, ia em mais de quinhentos; mas suponhamos quinhentos..."

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