A milícia cidadã: a Guarda Nacional de 1831 a 1850

vícios das nossas eleições não eram atribuíveis aos iletrados ou analfabetos, já que ninguém os podia responsabilizar pelas qualificações fraudulentas, duplicatas imaginárias, apurações indecorosas, ou ainda pelos contratos administrativos. E nem ficaria bem a uma câmara eleita pelo povo, relegar, de repente, ao hilotismo político a maioria imensa desse mesmo povo que a elegeu. Para esquivar-se a tais críticas, não se cuidou, na lei Saraiva, de impor diretamente a exclusão dos analfabetos, mas foi para excluí-los, de soslaio, que se elevou o nível de renda a ser exigido dos que devessem votar, reclamando uma prova de renda. Acreditavam os autores e os partidários da lei, e disseram-no, que, segundo muitas probabilidades, os que pudessem satisfazer as novas exigências saberiam ler e escrever. Mais não seria preciso para concretizar-se, entre nós, uma aristocratização do eleitorado, justamente no momento em que outros países, tomando caminho oposto, iam adotando até o sufrágio universal, ao estipular que o operário assalariado, o criado estipendiado e, com maiores razões, o liberto, que labutou no eito, não podiam votar a não ser excepcionalmente. Tudo porque, na expressão de Rui Barbosa, um dos reformadores, o "censo pecuniário" já supõe, na prática, o "censo literário". Afinal, com a primeira Constituição republicana, e pela primeira vez na História, aos analfabetos será expressamente negado no Brasil o direito de voto.

Tais considerações, se fogem um pouco ao tema deste livro, ajudam, em todo caso, a entender por que uma sociedade como a nossa, de raízes populares, mas de timbre aristocrático, pôde, em dado momento, comportar uma instituição como a Guarda Nacional de 1831, onde tão manifestos são os traços populares e mesmo plebeus. Não é crível que essa sociedade se democratizasse tão subitamente apenas com o 7 de abril, e o exemplo lembrado de Teófilo Ottoni, um dos logrados daquela journée des dupes, serve para indicar o contrário. O que acontece é que, numa milícia onde a bravura pessoal e a sujeição à disciplina hão de valer decisivamente, sejam estas de preferência as virtudes exigidas em um comandante, e não a ilustração, a abastança ou a eminência social, por exemplo, que pareciam qualidades adequadas de um legislador ou homem de Estado. De qualquer modo, e mesmo com tais limitações o cunho democratizante da milícia cidadã dificilmente encontraria melhor ocasião para surgir do que aquela em que uma transformação quase radical nos nossos quadros dirigentes acabava de operar-se. De nenhum dos homens que subiram ao poder com o 7 de abril e que contavam entre seus guias um

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