Quando, ao raiar a madrugada, abri os olhos, já havia muita gente ao meu redor. Kamairahó estava ocupado em limpar cuidadosamente a minha bagagem da invasão de baratas (anaoé). Na medida em que continuava tomando conta de mim, afigurava-se ele cada vez mais como o principal da aldeia. Ouvindo-me queixar da praga noturna dos ií, convidou-me a deixar a casa-dos-homens para morar com ele. Aceitei e quando entrei na sua casa tornei-me alvo de outras atenções. Kamairahó mandou a mulher soprar o fogo para me iluminar o caminho; fez-me guardar a lanterna para não ser amolado com pedidos; bastava eu pronunciar a palavra y e já me traziam água oferecendo-me sempre a maior de duas cabaças. Mulheres e crianças me envolviam em meiga confiança e me chamavam dotoí, adocicando assim com o sufixo diminutivo o título com que me tratavam os companheiros de viagem. Todo o ambiente é ternura. Ninguém grita com ninguém e mesmo os cães que ladram na minha passagem são ensinados discretamente a me respeitar. Em toda parte encontro alegria e riso e quando me afasto um pouco da aldeia, escuto alegres gargalhadas ao longe.
A cortesia não era privativa de Kamairahó e de seu grupo residencial; manifestava-se, em diversas graduações, como um padrão de comportamento geral. Vuanomanchí, por exemplo, morador de outra casa e de aparência mais rude do que aquele jeitoso líder-mor, traz-me a sua rede quando me vê sentado num tronco de árvore; oferece-me um pauzinho para espetar as favas quentes que me deu; e como lavo frequenteniente as mãos, vai buscar para mim, depois de me ter regalado com peixinhos fritos, um prato com água, indicando a areia do solo para substituir o sabonete, ele que nem sequer se lava quando uma criança sentada no seu colo lhe urina sobre as coxas.
Sinal de delicadeza também era o fato de nunca ninguém achar graça quando sucedia algo desagradável ao hóspede. Quando três cães dilaceraram uma toalha do rev. Kegel, os tapirapé não riram e nem caçoaram; ficaram muito agitados, zangados com os animais e com pena de nós. Note-se que costumavam rir quando um deles caía e se machucava.
De súbito, porém, o amável tratamento dispensado ao visitante pode transformar-se radicalmente, quando surge a preocupação desesperada por causa de alguma doença. Eu já morava havia mais de cinco semanas na casa de Kamairahó quando Tataanchoa (38) adoeceu. Em geral, a menina de três anos dormia na rede da mãe, Kuchamokoantinga (30), que, tendo abandonado o pai da criança, Maäyma (27), vivia maritalmente com Kamairá (29) na casa b. Quando o estado de Tataanchoa começou a inspirar cuidados, Manärií (22), sua avó materna, e Maäyma, levaram-na para a casa a onde moravam com Kamairahó, a fim de tomar conta dela. A menina piorou rapidamente até o dia em que, ao amanhecer, se levantaram prantos ao redor de sua rede. Mulheres de outras casas choravam em companhia das da nossa. Também um homem chorava: Maäyma, o pai (cf. cap. XI). Estava sentado na rede, aos soluços, cobrindo o rosto com as mãos. Vivendo sem mulher, parecia ter dado à filhinha todo o carinho que havia nele. Emagreceu, sempre taciturno e triste.