Ouro Preto, o homem e a época

instintiva deferência. Nós, os pequenos, mesmo quando era apenas para bulir conosco ou saber das nossas leituras e brincadeiras, fazíamos incontinente um examezinho de consciência para ver se estava tudo em ordem, pois o "velho" em questões de caráter não tergiversava. Severo mas justo, não me lembro de o ter visto castigar de fato ninguém e, com os pequenininhos, mostrava uma infinita e sorridente indulgência. Era um chefe de clã que não declinava da responsabilidade moral da sua gente. Uma peculiaridade notória: o seu culto pela inteligência, tendo para ela secretas e inesgotáveis tolerâncias.

Este ambiente da Chácara, no entanto, em cuja pequena capela muitos batizados e casamentos festivamente se realizaram, na pacatez patriarcal de um modus vivendi modesto mas digno, em torno daquele Vôvô Celso em que se condensava toda a legenda gloriosa da família, era entretanto secretamente agitado pelo extraordinário interesse com que ali se seguia e julgava os acontecimentos da República. Como o borbulhar de subterrânea corrente, uma onda contida mas vivaz de paixão política latejava ainda sob o aparente ramerrão do dia a dia. A leitura dos jornais constituía indeclinável obrigação. Vôvô Celso vivia por assim dizer mergulhado neles. Havia uma palavra pejorativa entre todas, que ouvi inúmeras vezes pronunciar aplicada a uns e outros, e que me parecia marcar como um ferrete aquele que designava: adesista, aderiu...

Criei-me positivamente na atmosfera de reprovação que a envolvia e da qual Vôvô Celso era a antítese viva e admirável. Não se conspirava naturalmente na Chácara contra o novo regime, mas o ar que se respirava era de indefinível conspiração. Pelo menos a conspiração da crítica exercida livre e causticamente, embora com absoluto espírito de equidade.

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