Cultura e sociedade no Rio de Janeiro (1808-1821)

de mais alta patente. É como se a mãe-pátria pretendesse vincar fundamente de sua presença atuante, uma terra que logo depois terá de abandonar à sua sorte. Com efeito, 1821, que representa o terminus ad quem desta pesquisa, ainda é nitidamente, no Brasil, um ano português, assim como 1822 já é em todos os sentidos o ano brasileiro, se aceitarmos conhecida observação de Oliveira Lima. De modo que um contacto igualmente íntimo com as duas histórias, a da antiga metrópole e a da antiga colônia, parece da maior importância, não só para quem busque apreender o que foi a vida brasileira durante os anos que antecedem de perto a Independência, mas também, e sobretudo, para quem tente desvendá-la nos esconderijos menos acessíveis aos instrumentos da historiografia tradicional.

Naturalmente, a abordagem do que foi a vida brasileira num momento em que já se iam forjando algumas das pré-condições da emancipação nacional, mas em que a própria ideia de emancipação ainda está no casulo, há de visar mais diretamente o que constitui, de um ponto de vista político, seu palco maior, pois é dali, é do Rio de Janeiro, que o processo de mudança, depois de ganhar forças, irrompe e transborda, afinal, sobre o restante do país, acarretando novos usos, novos princípios e impaciências novas. O processo, esse efetivamente de radical subversão, e que começa a ganhar corpo, embora timidamente, quando principia o período estudado neste livro, já se pode prenunciar num momento em que a presença da Corte portuguesa, no Brasil, e antes de sua instalação no Rio, torna inevitável a carta régia de 28 de janeiro de 1808, assinada na cidade do Salvador, mal se tinham passado quatro dias depois do desembarque do príncipe regente. Por ela admite-se o ingresso nas alfândegas da colônia americana de todos e quaisquer gêneros, fazendas e mercadorias, transportados em navios de potências que se conservam em paz e harmonia com a Coroa portuguesa, ou em navios de vassalos da dita Coroa. Pela mesma ocasião, isto é, antes de seguir viagem rumo ao sul, concede licença o príncipe para a instalação de fábricas e indústrias, além de determinar a criação de uma escola médico-cirúrgica, entre outros benefícios de que há por bem dotar o novo império que vem criar.

De fato significava tudo isso o começo, não apenas de um desvio, e sim de uma inversão deliberada dos critérios de cunho mercantilista adotados até então por Lisboa na administração das possessões e senhorios de Sua Majestade Fidelíssima. Esses critérios, que aliás estavam longe de representar especialidade lusitana,

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