A Idade Média mal conheceu as aspirações conscientes para uma reforma da sociedade civil. O mundo era organizado segundo leis eternas indiscutíveis, impostas do outro mundo pelo supremo ordenador de todas as coisas. Por um paradoxo singular, o princípio formador da sociedade era, em sua expressão mais nítida, uma força inimiga, inimiga do mundo e da vida. Todo o trabalho dos pensadores, dos grandes construtores de sistemas, não significava outra coisa senão o empenho em disfarçar, quanto possível, esse antagonismo entre o Espírito e a Vida (Gratia naturam non tollit sed perficit). Trabalho de certa maneira fecundo e venerável, mas cujo sentido nossa época já não quer compreender em sua essência. O entusiasmo que pode inspirar hoje essa grandiosa concepção hierárquica, tal como a conheceu a Idade Média, é em realidade uma paixão de professores.
No fundo, o próprio princípio de hierarquia nunca chegou a importar de modo cabal entre nós. Toda hierarquia funda-se necessariamente em privilégios. E a verdade é que, bem antes de triunfarem no mundo as chamadas ideias revolucionárias, portugueses e espanhóis parecem ter sentido vivamente a irracionalidade específica, a injustiça social de certos privilégios, sobretudo dos privilégios hereditários. O prestígio pessoal, independente do nome herdado,