Os sertanejos que eu conheci

alguma das criações do terreiro ou engolir ovos postos ou chocados por galinhas. Castigo enérgico virá corrigi-los para sempre. Assim se explica por que os cães são geralmente de uma magreza horrível, que os obriga a dormir longas horas do dia para suportar o interminável jejum.

Contudo esses "magros", como costuma chamá-los o povo, estão sempre de prontidão. Apenas avistam o seu dono de espingarda na mão, levantam-se ardentes e põem-se a correr na frente, farejando por todos os lados. Sem muita demora, ouvem-se de bem longe seus latidos avisando, assim, que descobriram, perseguem ou talvez já seguram acuado algum bicho, anta, veado, porco-do-mato ou caititu, ou onça. Se não desanimarem até a chegada do caçador, felizes serão, porque apenas morta a caça, recebem ali mesmo a recompensa, isto é, a massa de vísceras sangrentas. Os famintos devoram tudo em poucos momentos, por volumoso que seja o montão de intestinos, bofes, fígado, coração, etc. Compensam-se, então, no monstruoso banquete, das extraordinárias privações de muitos dias anteriores.

Assim ficará gravada em sua memória, a recordação do festim, junto à esperança animadora de poderem renová-lo quando chamados para novas caçadas. É o que supomos os cães imaginarem, ao vê-los de volta de alguma expedição feliz, deitados e dormindo empanturrados, agitando durante o sono pés e patas, ganindo sob o influxo de impressões trazidas dos matos, mastigando em imaginação despojos de anta ou de caititu. Quantas vezes observamos esses reflexos interessantes!

Empregam outro sistema mais cruel ainda para adestrar esses coitados. Quando o cão, depois de ter rastejado e alcançado algum bicho selvagem, não sabe ou não pode, por infelicidade ou covardia, segurá-lo até a chegada do caçador, quando o infeliz, numa palavra pitoresca do sertão, "perde a caça", deixando-a fugir, duro castigo o espera. Primeiro, recebe prolongada surra, em seguida sofre a amputação de uma orelha. Se o coitado recair na mesma falta, a outra orelha será também decepada.

Certos caçadores sem piedade, não achando mais o que retalhar na cabeça dos seus fiéis auxiliares, não hesitam em amputar-lhes o rabo com cortes sucessivos. Vimos cães decrépitos, aleijados e disformes, em consequência de tais barbaridades. Dura aprendizagem que lhes faz adquirir tanta teimosia e valentia, que preferem antes morrer dilacerados pela onça ou vitimados pela fome, do que voltarem logrados perto do seu dono.

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