presença incômoda nos centros urbanos mais europeizados. Essa nova atitude desenvolvida num momento em que se vão tornando mais raras as ocasiões de contacto dos brancos atraídos para o meio citadino com as populações indígenas, e que corresponde bem ao horizonte mental da Era das Luzes, leva ao querer descobrir nos primitivos habitantes da América certas virtudes varonis que, somadas a uma caprichosa e distante altanaria, à indômita aversão a todo trabalho continuado, ao gosto pronunciado pela vida solta, à suscetibilidade sempre à flor da pele, ao ponto de honra, são tanto mais decantadas quanto mais se assemelham aos padrões ideais de comportamento dos fidalgos de boa cepa.
Para o negro que, mal ou bem, tinha de submeter-se à vontade arbitrária dos seus senhores, restavam, quando muito, qualidades capazes de tocar corações bem formados e piedosos, mas que se antepunham, num contraste quase simétrico, às virtudes senhoriais: aptidão para o trabalho físico, sujeição e exemplar fidelidade ao amo, resignação inquebrantável ao mau destino que tanto o rebaixou e humilhou, devotamento amoroso da "mãi preta"... Para aqueles que, situados nos degraus mais altos da hierarquia social, satisfeitos com o reconhecimento que possa ser tributado às virtudes gloriosas que pertenciam por definição ao corpo da nobreza, não custaria apreciar devidamente as qualidades prestimosas, ainda que prosaicas, atribuídas aos que ficaram nos degraus inferiores, e mesmo condoer-se deles. Só seria verdadeiramente intolerável, num mundo que se formou à sombra de venerandas desigualdades, que uma pessoa de serviço acabasse por assumir comportamentos que pertencem mais naturalmente a gente de alto coturno, pois assim como não existiriam cavaleiros onde não existissem peões, é de esperar que uns e outros guardem os lugares que previamente lhes foram demarcados.
Tal situação não é, aliás, apanágio dos negros brasileiros, e nem pertencem unicamente a sociedades altamente hierarquizadas. Sobre as virtudes dos pretos escravos (virtudes, naturalmente, do ponto de vista dos senhores), e também sobre alguns de seus defeitos, que são como defeitos dessas virtudes — dócil, mas irresponsável; fiel, mas preguiçoso; humilde, mas inclinado à mentira e ao furto... — não faltam notícias, por exemplo, nos relatos acerca dos Estados Unidos de antes da Guerra Civil. Um sociólogo dos nossos dias, Stanley M. Elkins, chegou mesmo a reunir esses estereótipos num personagem fictício, o "Sambo", que tem raízes na literatura inglesa do século XVIII, e reflete os gostos de uma era marcada por arrastamentos sentimentais. Desde então, isto é, desde 1959, que foi quando se imprimiu pela primeira vez o livro de Elkins, o "Sambo" se tornou figura quase inevitável nos estudos históricos e sociológicos acerca do escravismo norte-americano, e é encontrado tanto na obra monumental de David Brion Davis sobre o problema da escravidão na cultura ocidental, publicada em 1966, como o mais recente estudo baseado