O Selvagem

Conforme disse acima, os índios atribuem à cada ordem de criação um deus protetor, uma espécie de mãe, que a defende contra tudo, e especialmente contra a ação destruidora do homem. Nas histórias que narram há quase sempre um homem que persegue uma certa ordem de criação, e é a esse homem, que persegue essa ordem de criação, que o deus aparece fazendo algum mal; o mal, portanto, feito a tal homem, não é um mal, é uma punição justa e merecida, segundo as ideias dos selvagens.

Tomemos os mesmos exemplos citados. Anhanga é o deus da caça do campo; Anhanga devia proteger todos os animais terrestres contra os índios que quisessem abusar de seu pendor pela caça, para destruí-los inutilmente. Concebe-se sem esforço o papel importante que a caça deve representar em povos que não criam animal doméstico algum e que, por conseguinte, só se alimentam dos que são criados nos bosques espontaneamente. Partindo dessas ideias, haverá nada mais natural do que existirem milhares de histórias em que Anhanga figure como fazendo malefício aos homens?

Da minha coleção de contos tomarei uma lenda, ao acaso, para servir de exemplo:

Nas imediações da hoje cidade de Santarém, um índio tupinambá perseguia uma veada, que era seguida do filhinho que amamentava; depois de havê-la ferido, o índio, podendo agarrar o filho da veada, escondeu-se por detrás de uma árvore, e fê-lo gritar; atraída pelos gritos de agonia do filhinho, a veada chegou-se a poucos passos de distância do índio — ele então a flechou e ela caiu. Quando o índio, satisfeito, foi apanhar sua presa, reconheceu que havia sido vítima de uma ilusão do Anhanga; a veada, a que ele perseguia, não era uma veada, mas sua própria