O Selvagem

a noite apareceu, que é, segundo penso, um fragmento do Genesis dos antigos americanos. Aí, como na Bíblia, as desgraças dos homens provêm de uma desobediência a Deus, em um episódio de amor.

O estilo é mesmo um pouco bíblico, e citarei apenas os primeiros versículos, que são:

Ypirungáua ramé intimahá pituna; ara ánhum opain ara ope.

No princípio não havia noite; havia somente dia em todo tempo.

Pituna okeri oikó ywipe.

A noite dormia no fundo das águas.

Intimahá sooitá; opain mahá onheen.

Não havia animais; todas as coisas falavam.

A lenda é longa para eu poder agora repeti-la toda; parece-me, porém, que, no laconismo solene da frase, há a mesma majestade que notamos nos dizeres da Bíblia.

As poesias populares de São Paulo, que ainda não foram coligidas, são continuação da poesia dos indígenas; resta que apareça em São Paulo algum Silvio Romero, que as colecione e imprima, com o que dotará a nossa pátria de tesouro, com valor superior aos arremedos da literatura europeia, com que enchem nossa imprensa.

São coisas selvagens e rudes, bem o sei, mas são a descendência do pensamento dos povos americanos, de que nós somos os filhos e os sucessores.

Possuo nos meus manuscritos coleções de quadras indígenas rimadas.

Ignoro se a rima já era usada pelos indígenas, ou se eles a imitaram dos europeus.

Citarei, dentre essas, a seguinte que ouvi, há cerca de 40 anos, em Araritaguaba, hoje Porto Feliz: