Poder local na República Velha

Apesar de serem a capela e o cemitério os centros principais e os pontos de referência do "culto aos Britos", não se pode estabelecer concretas vinculações entre a devoção aos "santos Britos" e a prática do catolicismo. A identificação mística dos Britos como "figuras santas", portadoras de poderes sobrenaturais, é um desses fenômenos — não tão incomuns — arreligiosos. As fotos dos Britos são encontradas em centros espíritas, do mesmo modo que os apelos aos poderes dos mártires são formulados indistintamente por devotos de todas as crenças. O que melhor pode conduzir à compreensão da persistência da fé nos Britos é uma breve leitura dos bilhetes que se acumulam sobre o "altar" e nos escritos das paredes da "sala dos milagres", pedindo ou testemunhando graças alcançadas.

No totalidade, os fiéis recorrem a três categorias de problemas que afligem, um com exclusividade e os outros dois com mais frequência, as massas desprovidas de bens materiais: a segurança num emprego para o homem da casa, o marido ou o filho; a segurança de boa saúde e a cura de doenças e o ajustamento da vida sentimental e familiar.

Sem pretensões a especulações mais profundas nessa ordem do problema, a conclusão a que se chega é que o misticismo que envolveu as figuras dos Britos, a exemplo do que afirma Rui Facó, a propósito do estudo do fanatismo religioso no Nordeste, "tem um fundo perfeitamente material" e serve "apenas de cobertura a esse fundo. É a sua exteriorização". Trata-se de uma diferença de grau, meramente quantitativa, de um problema social que, na essência, é o mesmo. Lá, "populações submetidas à mais ignominiosa exploração e mergulhadas no mais completo atraso (...)"; elaborando "variantes do cristianismo, as populações oprimidas do sertão separavam-se ideologicamente das classes e grupos que as dominavam, procurando suas próprias vias de libertação".(22) Nota do Autor

Aqui, persistindo as desigualdades relativas à propriedade dos bens, o fenômeno do "coronelismo", como resultado das modificações nas relações de produção de uma sociedade capitalista em expansão, vestiu novas roupagens. Mas é no princípio que se constitui na essência do sistema "coronelista" — dê-se ao sistema o nome que se queira dar no correr do século XX — que está a explicação para a mística da "sobrevivência" dos Britos: a massa dependente, despossuída de bens, identifica-se com as vítimas, projetando no seu martírio as vicissitudes da sua condição

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