Jean Brunhes (e Camille Vallaux, La géographie de l'histoire, 88, Paris, 1921) registra em Belgrado de 1913, numa loja, um samovar, para fazer chá, e uma kanta, vaso para a boza, bebida de milho fermentado. O "samovar" é russo e a "boza" turca. O país eslavo, estivera sob o domínio da Turquia. Os dois utensílios valiam documentos, probantes como monumentos.
Imagino mestre Brunhes estudando sociologicamente a feijoada "completa". Verificaria a presença constante de todos os elementos colaborantes na cultura popular brasileira: carne de gado europeu, verduras e legumes africanos, asiáticos, ameríndios, fundidos na obra-prima, contemporânea e secular. Peixe refogado. O peixe é brasileiro. O dendê veio do Congo. A técnica é portuguesa. A cebola do poente asiático.
Só o quiabo, Hibiscus esculentus, dava um tratado de evocação erudita. Comeram-no os faraós antes das pirâmides, conquistadores árabes, sobas africanos, brasileiros de quatrocentos anos. Quem o vê, anônimo e perdido na vulgaridade do uso, não lhe presta a merecida homenagem. Ninguém atina que, quando faleceu o Homem da Lagoa Santa, o quiabo era muitíssimas vezes secular. Entre aquele crânio amarelo que está no Instituto Histórico Brasileiro e o quiabo, acompanhando um frango mineiro, não deve haver hesitação na escolha.
E há, ao lado do quiabo, dezenas e dezenas de outras glórias prestantes e generosas em serviço da fome popular brasileira. Falta o conhecimento para a distinção laudatória, indiscutível.
Na visão de Joppe o apóstolo Pedro ouviu a voz de Deus anulando as limitações alimentícias do Levítico. Todos os animais, mundificados pelo Senhor; podiam alimentar o homem. Terminara a discriminação imposta por Jeová e que todas as religiões asiáticas, anteriores e posteriores, têm como regra de fé. O êxtase em Joppe afirmava a ortodoxia infalível. O mata e come, foi o mais surpreendente dos atos revolucionários do plano alimentar. Tão atrevido e perturbador que ainda não se tornou universal. As restrições alimentares continuam, não somente determinadas pela higiene nutricionista mas ainda como preceito religioso ou consuetudinarismo.
A iniciativa de uma nova comida é audácia assombrosa. Inevitável a comprovação da inocuidade e sabor, prévia e desconfiadamente feita. Frutas, féculas, folhas, brotos, desconhecidos, são motivos de prova na ponta da língua instintiva e natural,