Carême ó o derradeiro estudioso, ainda confrontando, informando sobre base histórica, esclarecendo, indagando. A multidão dos livros subsequentes fica no nível das receitas sem evocação, sem colorido, sem distinção na dinastia dos acepipes, como se eles não tivessem passado, raízes, anedotas, antecedentes justificadores da sobrevivência. Os filósofos já não escreviam sobre a culinária.
Sob Luís Filipe, rei dos franceses, a culinária é profissão, esmero, conquista de permanência, rivalidade hoteleira; uma arte de fixar o paladar mas perdendo os fundamentos culturais, a investigação letrada, valorizadora da boca para cima. E assim continua em triste e deprimente média geral.
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Como não se pode servir a dois senhores, quem come não conversa e quem conversa não come. O comensal narrando apaixonadamente a jornada a Bali ou ao Tibete enquanto mastiga, jamais saberá o que está mastigando. O centro de interesse fixa-se noutro ponto. Evapora-se a sutil e maravilhosa concordância de todo organismo com o minuto da deglutição consciente. Minuto em que se acusam, perceptíveis, as gamas indefinidas dos sabores que cada porção apresenta, depois de atacada pela ptialina.
Muito do verdadeiro Martinho Lutero está nas conversas da mesa, Tischreden, mas... depois de comer. Eckermann nunca ouviu um Goethe, de boca cheia. Os gregos, que não eram bárbaros, comiam em silêncio e quase sem beber. No final da refeição abria-se o symposion, "bebida em comum", para conversar, discutir, expor, debater todos os assuntos. Era a hora da música, do canto, dos bailados. Antes, no deipnon autêntico, comia-se. Os vinhos não perturbavam o conhecimento identificador das iguarias superiores. A hora do aparecimento lúdico, permitindo a euforia alcoólica, coincidia com o ambiente da expansão letrada, gesticulante, declamatória, erudita. Agora, civilizados, comem falando e bebendo...
Por isso, outrora, o título de "banquete" coroava os labores da indagação filosófica; "banquete" de Platão, de Xenofonte, dos Sete Sábios, do Imperador Juliano, il Convivio, de Dante Alighieri, o Deipnosophistai, de Ateneu.