atômicas. Quase todos os estudantes na Academia, vivendo numa "república" de sabor coimbrão, estrelavam ovos, assavam carne, batiam bifes. Cento por cento das donas e donzelas eram doceiras e não se atrapalhavam na improvisação de um almoço. Para a maioria presente fazer um café constitui problema, coá-lo certo, negro, perfumado, restaurador. Almoço de lata é comida, e não refeição.
Quando uma nossa senhorita faz curso culinário sabemos que o Brasil cotidiano está ausente da aprendizagem. Pratos russos, alemães, ingleses, suecos, são as "constantes". A dificuldade enriquece a feitura do manjar mas a continuidade banaliza qualquer exceção.
Houve sempre a vaidade natural dos pratos estranhos que terminaram sendo comuns. Quae fuerant vitia mores sunt, como dizia Sêneca. Vícios tornados virtudes pela insistência funcional. Podem arguir-me de parcial, defendendo os vícios velhos da mesa brasileira, mas il y a des vices légitimes, pensava, há quatro séculos, Montaigne.
Outro aspecto é a raridade vocacional no mundo contemporâneo. A razão da escolha profissional decorre da retribuição financeira. O sucesso econômico não proporciona uma alegria criadora, o júbilo silencioso da devoção real. Repleta mas jamais satisfaz intimamente, mantendo antes o desajustamento, inquietação, ansiedade e esse estado perpétuo de inconsciente irritação pelos voos alheios. As verdadeiras glórias humanas foram realizações vocacionais. Essas determinam a tranquilidade interior, profunda, generosa, inefável.
A mentalidade feminina repudia a cozinha na inversa proporção da conquista cultural. Possíveis as "amadoras" de música, canto, dança, costura, alta-costura. Cozinha não.
"Hoje em dia é pra mulher...
E, por causa dos palhaços,
Ela esquece que tem braços;
Nem cozinhar ela quer."
como cantava, em 1936, Noel Rosa.
A vocação obedecida inclui a intenção que é o destino oblacional da tarefa consciente. A intenção, por si só, não produz a força vocacional, fecunda e lógica. O presidente Hénault dizia que a diferença entre um mau cozinheiro e a marquesa de Brinvilliers, eminente envenenadora, estava unicamente na intenção.