Que trabalharam, e trabalham mais que todos os soldados do mundo, e se mais que todos trabalham, bem merecem ser premiados mais que todos. Mas, ó fortuna viris invida fortibus! dizia Hércules. Oh, fortuna sempre invejosa, aos varões fortes! Bem experimentam nossos soldados, que se ajuntam poucas vezes valor e fortuna, porque assim como são valentes mais que todos, assim são mais que todos desgraçados. Não há infantaria no mundo, nem mais mal paga nem mais mal assistida(119)Nota do Autor; é possível que hão de andar descalços e despidos uns corpos tão ricos de valor! Descalços e despidos os soldados do rei das Espanhas, do mais poderoso monarca do mundo! Bem sabemos a quanta estreiteza está reduzida a fazenda real no tempo presente, mas quando el-rei neste estado não tivera outra coisa, a camisa (como dizem) havia de tirar para vestir tais soldados. Nenhum monarca do mundo chegou nunca a tanta pobreza, como Cristo Redentor nosso na cruz; e contudo, tanto que se viu com o título de rei sobre a cabeça: Rex judaeorum, não só os vestidos exteriores, senão a túnica interior deu aos soldados; e não a soldados que defendiam a fé, senão a soldados que crucificavam a Cristo: Milites ergo cum crucifixissent eum, acceperunt vestimenta ejus, et tunicam. E que fizeram esses soldados logo? Tomaram os vestidos do Senhor, e puseram-se a jogá-los. Pois se o verdadeiro Rei se despe para que os soldados tenham que jogar, quanto mais se deve despir, para que tenham que vestir? E mais quando eles são tão valentes e tão briosos, que andando rão rotos e tão despidos, que puderam ter esquecido o vestir, nem por isso se esquecem do investir. E certo, senhores, para que digamos e confessemos tudo.