curar um endemoninhado mudo: Erat eficiens daemonium, ei illud erant mutum. O pior acidente que teve o Brasil em sua enfermidade foi o tolher-se-lhe a fala; muitas vezes se quis queixar justamente, muitas vezes quis pedir o remédio de seus males, mas sempre lhe afogou as palavras na garganta, ou o respeito, ou a violência; e se alguma vez chegou algum gemido aos ouvidos de quem o devera remediar, chegaram também as vozes do poder, e venceram os clamores da razão. Por esta causa serei eu hoje o intérprete do nosso enfermo, já que a mim me coube em sorte; que também São João não falou por si, senão por boca de Santa Isabel. Na primeira informação da enfermidade consiste o acerto do remédio; e assim procurarei que seja muito verdadeira e muito desinteressada; falaremos, já que nos é licito, para que se não diga do Brasil o que se disse da cidade de Amidas, que a perdeu o silêncio: Silentium Amidas perdidit. E como a causa é geral, falarei também geralmente que não é razão, nem condição minha, que se procure o bem universal com ofensas particulares.
III
A enfermidade do Brasil, senhor, é como a do menino Baptista, pecado original. São Thomaz, e os teólogos, definem o pecado original com aquelas palavras tomadas de Santo Anselmo: Est privatio justitiae debitae; que o pecado original é uma privação, uma falta de devida justiça. Bem sei de que justiça falam os teólogos, e o sentido em que entendem as palavras; mas a nós, que só buscamos a semelhança, servem-nos assim como soam. É pois a doença do Brasil, privatio, justitiae debitae, falta da devida justiça, assim da justiça punitiva, que castiga maus, como da justiça distributiva, que premia bons. Prêmio e castigo são os dois polos em que se revolve e